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“Vamos criar um browser chamado Aria. Queremos revolucionar o mundo”

Diario Noticias

Foi um dos rostos dos tempos em que parecia tudo correr bem. Deram-lhe o Prémio Pessoa, condecoraram-no, descreveram-no como visionário. Depois foi a crise, e a YDreams passou a ser tratada como uma desilusão.

É do alto do seu 1,90 m que revela como investidores canadianos, que acreditaram no valor destes imaginadores, permitiram mudar o rumo das coisas. Não faz a coisa por menos: quer a revolução, com o anarquista russo Piotr Kropotkin como exemplo, e rodeou-se de gente como ele para tratar do assunto. Nascido em Lisboa em 1954, estudou na Escola Ave Maria, no Liceu Pedro Nunes e no Técnico, onde se licenciou em Engenharia Civil sem ter ido realmente a muitas aulas. Era tenista e levava mais a sério esta carreira, que o levou à seleção nacional e à formação nos EUA. Mas uma lesão num pulso cortou-lhe esse caminho. Foi doutorar-se para a Virginia Tech, fez um pós-doc no MIT, em Boston, e regressou para dar aulas na FCT da Universidade Nova. Ser professor universitário vinha no DNA, havia muitos na família.

Qual é o seu nome, que decidiu mudar para lhe reconhecerem o doutoramento nos EUA?

Mudei de nome, sim. Havia uma pessoa no Ministério da Educação que duvidava que eu fosse eu. No diploma aparecia António Câmara, porque na América corta-se os nomes, e o meu bilhete de identidade dizia António da Nóbrega de Sousa da Câmara. Um amigo disse-me: “há uma forma de fazer isso, é mudares o nome”. Fui lá com duas testemunhas. Agora tenho uns dez nomes oficiais, pus todas as combinações: António Câmara, António Sousa da Câmara, António Nóbrega da Câmara, são todos válidos. Cheguei ao Ministério da Educação e disse: “Vê? Sou eu”. E finalmente tive o reconhecimento.

Foi uma espécie de registar a marca, a patente?

Registei a marca, todos os domínios da internet…

Isto é um sinal do que é o mundo académico em Portugal ou já não é assim?

O mundo académico mudou muito, na altura era tudo centralizado no Ministério da Educação. Agora está muito melhor, o país está mais aberto ao exterior. Mas eu vim no início de mudança, em 1984. Publicava-se 200 artigos em revistas por ano em Portugal, e agora são dezenas, se não centenas de milhares.

O que mudou?

Houve vários fatores. A razão principal deve-se a uma pessoa, o Mariano Gago. Ele criou a estrutura de investigação e criou uma massa crítica em Portugal em praticamente todos os domínios, porque se internacionalizou e adquiriu padrões de qualidade. Isso acaba por se transmitir a todas as gerações, não só dos investigadores mas das pessoas que vão à universidade. Obviamente não há só uma pessoa, há muitas outras, mas ele foi a fundamental.

Na mesma altura voltaram para Portugal várias pessoas que estavam no estrangeiro.

Havia algo que agora se está a tentar refazer – contratar pessoas novas que vinham de fora – mas o processo esteve parado. Essas pessoas, no início da carreira, construíram e tiveram os meios para o fazer. Os meios vieram do Mariano Gago. Hoje temos centros de classe mundial em praticamente todas as áreas.

Publicou em 2009 um livro chamado O Futuro Inventa-se. O futuro inventa-se?

Totalmente. Hoje há uma dialética, há vários artigos que dizem que é extraordinariamente difícil ter grandes ideias, Mas a questão é que se tivermos grandes ideias mudamos mesmo o mundo de uma forma inesperada. Basta ver o que aconteceu, ou está acontecer, na ciência em várias áreas e nas próprias empresas. Temos uma configuração empresarial no mundo totalmente distinta de qualquer outra era, com a Apple, o Facebook, a Amazon, o Google a dominarem completamente o mundo.

O que pode ser bom e mau?

Eu acho que é mau. Estou numa iniciativa que pretende tentar combater este domínio avassalador das grandes empresas americanas.

Que iniciativa é essa?

É uma iniciativa muito curiosa porque representa o que Portugal é hoje. Estão a confluir em Portugal pessoas com um talento extraordinário, como o Tony Fernandes, que é meu amigo há muito tempo e que desenhou o Netscape Navigator. Trabalhamos também com o Taylor Moore que foi o senior digital artist de jogos como o FIFA e o Final Fantasy Set. Um dos fundadores da Ethereum vive em Lisboa. Juntámo-nos todos formal e informalmente para criar um novo browser para a internet of everything, chamado Aria. Basicamente, queremos revolucionar o mundo.

Como?

Em 2010 e 2011 na YDreams quase fizemos uma fusão com uma empresa israelo-americana que na altura se chamava Ogmento. Falhámos a fusão mas logo a seguir eles tiveram um reforço de capital e foram comprados pela Apple, são a equipa da Apple para realidade aumentada. A realidade aumentada vai ser a interface da próxima geração. Nós tivemos o browser da internet que foi desenhado pelo Tony Fernandes, o Netscape, depois tivemos o iPhone, e agora com os óculos de realidade aumentada vai haver uma revolução impensável, talvez a partir do natal de 2019.

Vai ter de me explicar, isso para mim é ficção científica.

É muito fácil. Nós temos o mundo real, por um lado, e temos o mundo dos dados. A internet desenvolveu-se toda no mundo dos dados mas nós vivemos no mundo real. Aquilo que vai permitir a ponte entre o mundo real e o mundo dos dados é esta camada que vai ser visível através de óculos – hoje é visível através dos telemóveis – e que nos vai permitir indexar o mundo. Por exemplo, se eu quiser comprar uma prancha de surf aqui e vou ao Google, os resultados são desastrosos.

Porquê?

Porque o Google vai dar-me várias lojas que têm pranchas de surf, eu vou olhar para as lojas, vou tentar saber o preço. Portanto, vou ter de construir um processo para descobrir onde está a prancha de surf ótima. Se eu indexar o mundo, que é isso que nós estamos a fazer, vai ser possível eu encontrar a melhor prancha de surf muito rapidamente. Outro exemplo: antigamente em Portugal era fácil determinar quais eram as farmácias abertas ao domingo. Hoje é muito difícil, porque estamos dominados por search engines [motores de busca] globais e não suficientemente locais e muita dessa informação deixou de ter valor. Os jornais, que a tinham, assumem que alguém tem. Ninguém tem. A realidade aumentada, ajudada pela inteligência artificial, vai permitir-nos ter este mundo real inteligente. Eu chego a casa e sei exatamente onde estão as minhas coisas.

Mas sabe isso por natureza, sabe onde as pôs, conhece a sua arrumação.

Muitas coisas têm tags, a interface entre o mundo real e o digital, presentes no meu telemóvel e que me permitem várias ações. Uma delas é a partilha de bens. Esta foi a ideia de um jovem dinamarquês que vive em Lisboa e que conhece muito bem o que está a acontecer na rede. Há uma firma alemã, a slock.it, que pretende fazer a partilha universal dos nossos artigos. Imagine que estou em casa, tenho os meus bens, e há alguns que eu decido partilhar, o meu Black & Decker, o meu carro. Para isso acontecer, é preciso fazer o tagging destes produtos. Nós estamos a construir esta infraestrutura e o enorme benefício é que vamos conseguir trazer a economia de novo para um nível hiper-local. Uma das ideias também é ajudar os local media. No outro dia vi uma entrevista do Dan Costa, outro luso-americano, na PC Mag, a Aaron Shapiro [Huge]. Ele diz que a economia da atenção está a acabar porque nós desde que acordamos até à hora em que nos deitamos temos três mil impulsos publicitários. Como é que se resiste a três mil impulsos publicitários? Defende que vai acontecer a economia da eficiência e acha que os media vão ter de sobreviver através dela. [http://me.pcmag.com/artificial-intelligence/10624/news/the-end-of-the-attention-economy]

E isso significa?

Ele fala da criação de clubes verticais, e dá um exemplo que é o Dollar Shave Club, um clube na rede onde as pessoas que se barbeiam têm todos os produtos e fazem assinaturas. Se olharmos para o nosso bairro, para todos os bairros, vamos ter clubes orientados, o clube das padarias, por exemplo, e muitos desses clubes vão estar entroncados nos media locais. Vai haver uma mudança completa de paradigma e nós estamos a tentar criar a infraestrutura para que isso aconteça. E isso muda porque hoje as receitas da publicidade vão todas para o Facebook e para o Google. A nossa ideia é eliminar essa via e redistribuí-la.

Isso vem mesmo no momento em que está toda a gente irritada com o Facebook e com a questão dos dados. Está a dizer-me que as pessoas do meu bairro ficam a saber se eu tenho um Black & Decker?

Nós estamos alinhados com a Web 3.0. Aí as pessoas são donas dos dados, não há violação da privacidade. Eles não sabem exatamente quem é a pessoa e a pessoa pode disponibilizar os bens ou não. Essa é uma das maiores preocupações que nós temos. A ideia é: como desenhamos um sistema que faz vingar um novo tipo de economia sem os problemas dos gigantes que os criaram, que criaram todo este modelo de dados? Há várias outras hipóteses de mudar e foi para isso que decidimos começar a estudar os grandes revolucionários da História.

E então?

O mais inspirador é o Piotr Kropotkin [1842-1921], um anarquista russo. A minha mulher é arquiteta e contou-me que o Alvar Aalto disse que o livro que mais o influenciou na vida foi Memórias de um Revolucionário de Piotr Kropotkin. Fui imediatamente comprá-lo, li-o e é fascinante. Dei-o a ler a todos os meus estudantes de doutoramento. Ele nasceu príncipe na corte russa, era geógrafo e cientista, depois transformou-se num anarquista. Desenhou as comunidades locais com a ideia da partilha, de uma ajuda mútua que se pode reforçar. Em Portugal, o que nos fez sobreviver a esta crise e a várias outras foi a coesão que, apesar de tudo, ainda existe. Todas as pessoas associam o anarquismo a bombas mas a filosofia anarquista assenta no desenvolvimento da comunidade, na partilha, na possibilidade de as pessoas utilizarem bens gratuitos. Isso remete-nos à altura dos hippies, e há vários livros escritos sobre isso, como o Steal this book, [Abbie Hoffman, 1971] que é ultra revolucionário. O último capítulo não é aconselhável, é sobre como roubar e como fazer cocktail molotov. Começámos a ver como podemos enquadrar muitas dessas inspirações dentro deste sistema.

Peneirar, tirar o que vale a pena e deixar os cocktail molotov no livro?

Exatamente. Há várias ideias que valem a pena.

Isto é uma nova fase na sua vida ou é a evolução natural do que foi fazendo?

Sempre fui professor universitário, nunca abandonei essa componente. Em 1999, estava no MIT e via os meus colegas a criar empresas e a ficar multimilionários. Convidei nove dos meus ex-doutorandos para passarem temporadas comigo. Um dos objetivos foi mostrar-lhes que nós éramos tão bons como eles e portanto também podíamos criar uma empresa. Criámos a YDreams nesse espírito, muito inspirada no MIT Media Lab, um local ultra experimental. Os primeiros cinco anos foram a enorme felicidade de fazer investigação paga e muito mais bem financiada do que na universidade. E estávamos na universidade. Depois fomos atraídos para um processo de investimento. Fizemos um jogo com o Cristiano Ronaldo, que estava em início de carreira, e subitamente tínhamos 31 investidores interessados. Em 2009, quando estávamos à beira do break even, estava tudo a correr bem, estávamos a desenvolver tecnologias, e infelizmente estávamos também com pessoas a mais e não nos preparámos devidamente para a crise.

Houve um problema de gestão?

Houve um problema de gestão e um problema de estarmos muito à frente do tempo. Nós achávamos que o que estávamos a desenvolver em realidade aumentada ia estar no mercado daí a dois ou três anos e o mercado ia explodir. E não ia.

E caiu-vos uma crise em cima, também?

Caiu-nos uma crise em cima e nós ainda estávamos no processo de venda evangélica, ao contrário de todas as empresas enormes.

Venda evangélica?

É o bater porta a porta, a convencer a pessoa. A maior parte dessas empresas faz vendas quase automáticas através da rede. Fomos atingidos brutalmente pela crise e depois tivemos dois processos de venda de empresas que falharam no último minuto. Um foi a fusão da nossa divisão de realidade aumentada com a empresa Ogmento, e depois a Ynvisible esteve à beira de ser adquirida por um grande grupo económico alemão. Isto falhou em 2013 e depois a situação agravou-se.

E ficaram com 18 milhões de euros de dívidas?

Na verdade eram 16 milhões, dois milhões são reflexos, se não pagarmos os outros 16. Mas nas vendas nós perdemos à volta de 200 milhões. Se formos ver a valorização a que foi vendida esta empresa à Apple e também as estimativas da Ynvisible – eram pagamentos em várias fases – nós perdemos 200 milhões. A nossa dívida era encarada como uma fração do valor da empresa. Tivemos de fazer um PER [Processo Especial de Revitalização], um processo incrivelmente doloroso.

Tiveram de dispensar muita gente?

Foi horrível, um processo extraordinariamente difícil aqui em Portugal. Mas nós tínhamo-nos colocado e investido no Brasil, e aproveitámos o Campeonato do Mundo de Futebol e os Jogos Olímpicos para relançar a empresa a partir daí. E depois tivemos a sorte imensa de encontrar alguém que nos apresentou aos salvadores canadianos. Conhecemos investidores canadianos que disseram que tínhamos enorme valor e decidiram ajudar-nos.

Foi quanto tempo?

Demorámos imenso tempo a sermos listados na Bolsa por causa de todos os problemas, desta bagagem que as empresas tinham. Apesar de tudo, conseguimos. Demorámos um ano e meio a colocar a YDreams Global e dois anos e meio a colocar a Ynvisible. Falta recuperar a terceira, a Azorean, dos drones aquáticos, que colocámos numa bolsa secundária para receber numa dada altura. Estes dois ou três anos mostraram algo surpreendente: o que nós fizemos antes ainda tinha mais valor do que nós suspeitávamos. O Pokemon Go foi um sucesso enorme mas nós em 2002 tínhamos um jogo semelhante, da mesma linha, o Undercover, e houve alguém em Portugal que escreveu isso, o que é notável porque raramente nos elogiamos a nós próprios. O segundo ponto é que nós criámos um sistema de localização para espaços interiores – o GPS funciona só fora, dentro de casa não havia um sistema – patenteámo-lo e foi recentemente comprado pela Uber.

Por que é que a Uber comprou um sistema de localização interior?

Porque têm de ir buscar passageiros a garagens e centros comerciais onde o GPS não funciona. Fizeram uma procura e acabaram comprando o nosso sistema, o que nos deu imenso jeito. Tudo o que fizemos em realidade aumentada está muito próximo do que o Google e a Apple apresentam, dez anos depois. Nós tínhamos uma equipa fantástica, reunimos em Portugal uma equipa de um talento excecional. Devo agradecer imenso aos colaboradores que se têm portado fantasticamente, na sua grande maioria, ao longo deste percurso dificílimo. Chegámos à conclusão de que temos mesmo enorme valor. A firma Ynvisible, que sobreviveu com todas as dificuldades, faz os ecrãs que consomem menos energia no mundo, smart techs. Quando chegámos ao Canadá, eles mudaram-nos completamente a cabeça. Ainda tínhamos muito aquele espírito português de que temos de ir a todas para sobreviver. E hoje a YDreams Global e a Ynvisible são empresas totalmente focadas em alguns produtos. A YDreams Global criou um produto, a Arkave para realidade virtual. A Ynvisible faz as etiquetas inteligentes.

O que é?

Fazem várias. Uma delas é: eu envio uma encomenda e tenho uma etiqueta inteligente que me vai permitir ver se caiu em algum ponto do percurso. Ou tenho uma etiqueta para um vinho que prova que o vinho não é falso. São produtos desse tipo, muito focados, o oposto do que tínhamos. Tínhamos um laboratório vivo de milhares de ideias, experimental.

Onde cabia tudo? Tipo barata tonta?

Não era bem tonta mas há um ponto importante. Aquilo que nos salvou foi justamente nós sermos isso. Estive num projeto muito interessante, no European Institute of Technology, com um cientista notável chamado Alexander von Gabain e a primeira reunião foi muito curiosa. Foi uma análise do falhanço da Europa. A Europa tem enormes problemas em converter conhecimento. Uma das pessoas que falaram tinha sido CEO e chairman da Ericsson. Ele disse que o problema da Ericsson e da Nokia foi exatamente quando entraram os financeiristas acabarem com este espirito de skunkwork, de espírito experimental. O espírito experimental é fundamental.

Mas esse espírito experimental tem de ser apenas numa fase inicial, forçosamente?

Não, eu acho que tem de existir e hoje sei muito melhor como geri-lo. Uma das vantagens que temos é estarmos próximos da universidade onde temos oito mil estudantes e 500 professores. Este skunkwork é a vantagem que a universidade tem. Nós estamos ali e as pessoas vão podendo falhar. Por isso criei uma cadeira agora.

A Explora?

Sim. É uma cadeira muito gira porque é física e online, tem pessoas de vários cursos e de vários pontos do país. Eu transmito-lhes aquilo que aprendi e trago muitas destas pessoas que agora estão em Portugal, ou que nos visitam, para os examinar, para terem consciência, neste confronto, do que valem. O talento é fantástico, algumas ideias são espetaculares e é óbvio que não é em seis meses que revolucionam o mundo. Embora alguns acreditem que vão fazê-lo, o que é ótimo. É uma experiência que adoro e tem muitos elementos de cadeiras que eu vi noutros lados. Tentei congregar essa experiência e abri-la a toda a gente que a queira ver.

E a universidade reagiu bem?

Muito bem. Gosto muito da minha faculdade, a Faculdade de Ciências e Tecnologia. Quando criei esta cadeira falei com todos os diretores de departamento e gostei imenso, são pessoas extraordinariamente abertas. Isto é uma nova geração. Não estou dizer que a velha geração fosse pior, mas há uma nova geração muito mais aberta. Toda a gente me apoiou. O site vai ter testemunhos de cada um deles, estimulando os estudantes a descobrir. Explora não é bem uma cadeira de empreendedorismo, porque o empreendedorismo é terrível e extraordinariamente difícil. É mesmo para explorar, para experimentar.

Por que diz que um artesão tem vantagem sobre um empregado, por exemplo?

Tive um professor notável que me influenciou imenso, a pessoa que inventou a faixa bus, Donald Drew. A primeira vez que trabalhei com ele foi em 1992 e foi assim: eu faço um projeto, chego lá com o relatório e ele pergunta “é isto o melhor que consegues fazer? Se não é, eu não leio”. Fiquei com esse espírito, o espírito do artesão. O artesão é motivado pela qualidade, tem um orgulho fundamental no que faz. Uma das coisas que estamos a fazer no Explora e noutro projeto com a AIP [Associação Industrial Portuguesa] que é o Magical Industry Tour, é estimular os artesãos em Portugal a abrirem-se ao mundo. Hoje há os mecanismos que o permitem. Por exemplo, há este miúdo fantástico em Alcobaça, Radu Caraus, que tem o canal crazyPT. O Radu faz helicópteros e ensina os miúdos de todo o mundo a fazer helicópteros. Tem 22 milhões de pessoas a vê-lo, tem vários canais em várias línguas porque é moldavo, fala em português, em russo, em inglês. Um tipo destes, como se vê, pode ir para o mundo inteiro. E há vários assim. O Explora é um pouco isso. É mostrar-lhes que a partir daqui, se fizerem um trabalho bem feito, hoje há as estruturas que permitem vender no mundo inteiro.

Podemos ser globais e continuar locais?

A maior transformação é permitir isso e tem a ver com a rede, com a Amazon, a Alibaba, que nos permitem vender globalmente a partir daqui. E depois tem a ver com os processos de crowdfunding. A maior mudança tem a ver com os projetos de financiamento, não só com os Kickstarter. Agora está tudo a ir nessa direção. Mesmo estas cryptocurrencies, as initial coin offerings, que parecem incrivelmente especulativas, vão permitir a qualquer pessoa ir para toda a parte do mundo.

Para mim, está a falar chinês.

É esta possibilidade de eu emitir uma moeda e vender a moeda para financiar o meu projeto. Há o bitcoin, o ethereum, há várias moedas, e hoje em Lisboa já há várias empresas viradas para esse fenómeno, como uma das pessoas do início do ethereum.

crowdfunding não corre o risco de ficar saturado, de haver um momento em que se torna inviável?

Bem, a estimativa é há 150 milhões de investidores online.

A saturação está longe?

É muito difícil. Há vários tipos de investidores. Nós já passámos várias fases. Há os investidores que foram inventores e suportam os inventores. Há artistas que foram bem sucedidos e suportam artistas. O crowdfunding é fantástico. Nós estamos na bolsa, o que é outro lado do crowdfunding, muito mais regulamentado e legal. Esse é o futuro e um dos grandes desafios a Portugal é nós percebermos bem estes fenómenos. Há vários sistemas aqui. É perfeitamente possível na Europa fazermos uma bolsa, um sistema, que tem em conta estes fenómenos globais e centrá-los aqui. É o sonho deste miúdo dinamarquês, Mathias Gronnebaek, que fez parte do ethereum e agora tem uma firma chamada Braveno e está aqui em Arroios, em Lisboa. Ele atraiu e criou uma equipa global e estão a fazer esta bolsa para o futuro que tem todos estes fenómenos. Abre e facilita o acesso ao capital global.

Apesar de ter sido um aluno muito absentista no Instituto Superior Técnico, conheceu o professor Luís Valadares Tavares.

Que é aliás meu companheiro de ginásio hoje, tem piada.

Ele teve na sua vida uma grande importância, tal como Manuel Costa Lobo, na parte do Urbanismo. Há professores que nos marcam para toda a vida?

Completamente. No Liceu Pedro Nunes tive vários.

Teve Rómulo de Carvalho (António Gedeão), Jaime Leote e Humberto Cardigos dos Reis.

Uma experiência fantástica, o luxo absoluto. Quando cheguei aos Estados Unidos vi que tinha tido uma educação fantástica. Nós não só aprendíamos os fundamentos excecionalmente bem mas também fomos encorajados a pensar e a imaginar. No antigo 4.º ano, houve um dia em que tínhamos de inventar um teorema! Isto é impensável. Pensar de forma completamente distinta. Tínhamos uma qualidade de aulas… o Pedro Nunes marcou-me imenso, como acho que marcou muitas pessoas.

Depois o Técnico já não o marcou tanto. Talvez o campo de ténis?

Eu nessa altura era jogador de ténis a sério e tive de optar. Jogava na seleção e queria jogar internacionalmente. O Técnico tinha um estudo completamente impessoal, ao contrário do Pedro Nunes onde tínhamos turmas de 20 alunos com o professor. Chegávamos ali e tínhamos um auditório com 200 e aquele sistema de exames, charadas que tínhamos de resolver. Hoje, com mais distância, vejo que apesar de tudo foi útil, incrivelmente duro. Mas há melhores formas de ensinar. Muito do ensino português está virado para filtrar e o ensino devia ser exatamente o oposto: como é que nós olhamos para os estudantes e fazemos deles o melhor que eles conseguem ser?

É esse o seu objetivo, ser-se o melhor naquilo que se faz?

Se há algo de que me orgulho na vida é pegar nas pessoas e transformá-las no melhor que podem ser de acordo com as minhas capacidades e possibilidades. Isso é o que tenho feito verdadeiramente bem.

Não só como professor mas também como empresário?

Eu acho que sou muito melhor professor que empresário.

Vamos deixar a parte da gestão e falar da pessoa que mobiliza os outros.

Há várias fases quando se cria uma empresa e uma das pontes é essa: temos de mobilizar as pessoas. Nessa parte eu acho que sou bom. Mas faltou-me sempre o gosto pelo dinheiro. Gosto de surpreender o mundo mas quem tem sucesso é quem vende o mesmo produto banal biliões de vezes e esse não é o meu forte.

Hoje pode dizer que a YDreams Global está estabilizada?

As empresas estão estabilizadas, têm investimento e vão crescer. Nós temos uma dívida e colocámos a empresa na bolsa porque assim podíamos ir vendendo de forma controlada e não só pagar as dívidas – e queremos fazê-lo o mais rapidamente possível – mas também compensar os investidores que acreditaram em nós.

Vem de uma família de professores desde o bisavô, todos da área da agronomia do lado paterno.

Dois bisavôs, o Manuel Sousa Câmara e também o Inocêncio Camacho Rodrigues que foi governador do Banco de Portugal e esteve associado ao caso Alves Reis. Uma vez tive uma reunião no Banco de Portugal e disseram-me simpaticamente: o seu bisavô foi o único governador do Banco de Portugal preso. Embora tenha estado por pouco tempo. Eram professores universitários, um em Agronomia e o outro em Matemática e Finanças. O meu avô foi também professor universitário, criou a Estação Agronómica, e o meu pai foi arquiteto paisagista mas também ensinou no Instituto de Agronomia. E eu fui para o Técnico.

Fugiu à Agronomia.

Na altura a engenharia civil em Portugal era a elite da elite, agora custa-me ver que a engenharia civil está amadurecida, não é o campo excitante que era na altura.

Especializou-se depois em Ciências Ambientais, o que lhe permitiu ver que o mundo estava a mudar?

Completamente. Quando cheguei aos Estados Unidos, vivia-se aquela inflexão, o Ambiente atraía as melhores pessoas lá. E depois cá, quando cheguei à [Universidade] Nova, os alunos eram fantásticos.

O lado da sua mãe é mais artístico?

E cultural. Tive um trisavô, Ernesto do Canto, irmão de José do Canto que tinha uma das maiores bibliotecas do país.

Nos Açores?

Sim. Do lado do meu pai não tínhamos a maior biblioteca mas talvez a mais valiosa, tínhamos obras desde sempre em Vila Viçosa, uma coleção fantástica. Nos Açores eles tinham as maiores bibliotecas porque aproveitaram aquele período da laranja, em que havia dinheiro, e o Ernesto do Canto, o meu trisavô, era notável. Ele encorajou toda aquela lógica, como o meu tio-avô Ernesto Canto da Maia e várias pessoas muito viradas para um lado mais cultural e artístico.

Um belo cocktail.

O meu cocktail genético é brutal porque transcende em muito estas gerações. Fiz o teste do 23andMe e cheguei à conclusão de que tenho antepassados na Papua Nova Guiné, em África, judeus asquenazes, franceses, alemães, italianos, dos Balcãs. E isto ocorreu entre 1500 e 1800, o período em que Portugal esteve no mundo. Tenho imensos primos de DNA, alguns até próximos, que emigraram para o mundo inteiro, e a maior parte deles vem dos Açores.

Os Açores são o seu lado aventureiro, de ir à procura?

Tivemos uma reunião familiar há uns dez anos. Há uma associação da família Câmara no Brasil que tem cinco mil pessoas e que se reúne todos os anos. Juntamo-nos nos Açores e vieram de todo o mundo. É impressionante. Tenho primos em todo o lado. Quando cheguei ao MIT, em Boston, houve alguém que chegou ao pé de mim e disse: “sou teu primo”. Na lista telefónica em Boston há muito mais Câmaras do que em Lisboa. Só primos DNA na Califórnia tenho 150.

Isso dá para olhar o mundo de outra maneira, não é? É local e global ao mesmo tempo.

Completamente.

Vou ficar à espera da Aria, então.

Vamos anunciar no princípio de junho, estamos a fazer um filme fantástico. Vamos fazer uma revolução. Eu contei ao israelita que vendeu a empresa à Apple, a grande figura da realidade aumentada, e ele colocou-nos nas dez empresas a observar para o futuro nesta revolução da AR Cloud, a Augmented Reality Cloud.

Origem
DN
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