Três anos depois da sentença, o La Gôndola já está em ruínas
Contra a vontade de mais de 2 mil pessoas que assinaram uma petição, o famoso restaurante lisboeta já está a ser demolido para dar lugar a um edifício do Montepio. O acordo para o fecho de portas foi assinado em 2015, mas a discussão é bem mais antiga.
“Que leve muitas saudades quem esta casa deixar”, podia ler-se, pintado sobre pequenos azulejos embutidos numa das paredes do antigo restaurante, quase que a adivinhar o destino desta viagem.
Para quem hoje passa o portão número 64 da Avenida de Berna, em Lisboa, torna-se difícil imaginar o que aqui se ergueu há quase 70 anos, sob a alçada de um casal de refugiados da segunda Guerra Mundial. Uma casa branca de arquitetura antiga, trepada por folhas verdes que se estendiam sobre as nossas cabeças desde o portão principal até à entrada, janelas de bordas amarelas gastas pelo tempo, telha laranja a cobrir o teto e o característico arco de boas vindas com a inscrição “La Gôndola”. Mas o que era verde virou ramos desfeitos e as paredes que então suportavam o primeiro restaurante italiano de Lisboa são hoje ruínas por detrás das altas chapas de alumínio. A demolição iniciou-se este mês.
Já todos esperavam que este dia chegasse. Assim como Mário Moreiro, 51 anos e dono de uma pequena mercearia paralela ao restaurante, que continua “sem saber por que razão a demolição está a acontecer”, mas não é desfecho que o surpreenda. “Toda a gente por aqui falava disto.”
“Desde que cá cheguei em 1992 que se sabia que aquilo ia acabar por fechar.” Quem também o lembra é António Lourenço, 49 anos, um dos responsáveis pelo café Erges, a poucos metros do antigo La Gôndola. Na verdade, a discussão é ainda mais antiga. A decisão de demolir o edifício estava na mesa desde a década de 80, mas o acordo concretizado entre a Câmara Municipal e o Montepio – agora detentor do terreno – só aconteceria em julho de 2015. O estabelecimento que estava arrendado pela autarquia desde 1951 foi alvo de uma permuta que permitiu à câmara vender o terreno à associação mutualista, em regime de copropriedade.
O restaurante foi desenhado em 1928 por Júlio Salustiano
“A Rita é que gostava de lá ir”, uma cliente assídua do café Erges aproveita para dizer, atenta à conversa que acontecia com António Lourenço. “Muita gente, aliás.” Foi, desde há muito tempo, um espaço procurado por “gerações” de famílias na capital.
O DN tentou contactar os proprietários do agora extinto La Gôndola, mas sem sucesso. Sabe, contudo, que deram a volta ao destino que lhes foi anunciado e são agora responsáveis por um novo restaurante em São Bento. Entretanto, o futuro do terreno vendido será como “edifício para serviços” do Montepio, de acordo com o que o gabinete de comunicação da instituição avançou ao jornal Público.
Mário Moreiro puxa pela memória e recorda como tantos que ali entravam na sua mercearia lhe diziam como estavam “revoltados com o fecho”.
O desagrado dos antigos clientes da cozinha do La Gôndola tinha sido, entretanto, transmitido através de uma petição online contra a demolição da casa. Mais de 2 mil assinaturas pediam a inclusão do espaço no programa municipal Lojas com História, para aquele que é um espaço de importante “memória urbana”. Alertavam ainda para “a perda de identidade de Lisboa” com o fecho do restaurante desenhado em 1928 pelo engenheiro Júlio Salustiano.
La Gôndola conheceu a luz do dia poucos meses depois de Enrico Mandillo e Maddalena Ranedda fugirem juntos de Itália e se instalarem em Lisboa, no fim da Segunda Guerra Mundial. Ele um poeta, jornalista, oficial da Marinha e adepto do fascismo italiano. Ela, quem dominava o requinte de uma cozinha italiana e, mais tarde, portuguesa. Enrico e Maddalena não viveram o suficiente para ver hoje as cinzas do que foi, em tempos, o primeiro restaurante italiano de Lisboa.