Os senhorios que só arrendam à “família tradicional” e o mediador que acha que pode exigir o que quiser
Está no anúncio: "Só para família tradicional, com ou sem filhos." Mediador vinca, "para não se perder tempo", a exigência. Associação do setor considera anúncio discriminatório e "eticamente reprovável", ILGA também. Mas lei é omissa
Seis assoalhadas, traça antiga, três WC, chão de madeira corrida, tetos altos, varanda com vista para jardim, a cinco minutos do metro do Saldanha, em Lisboa. As fotos mostram uma casa bonita, luminosa, espaçosa (embora a divisão maior não chegue a 17 metros quadrados) e bem recuperada. O preço, porém, é puxado – 1300 euros -, para um apartamento de pouco mais de 100 metros quadrados, sem máquinas na cozinha, elevador ou garagem. E, no meio da descrição do anúncio, bastante longa e compacta, encontra-se esta inusitada exigência: “Atenção: os senhorios só aceitam família tradicional com ou sem filhos.”
Ligando para o número da agência imobiliária, a “Casas do Bairro”, quem atende, identificando-se apenas como “Nelson” e recusando comunicar outro nome, apressa-se, mal o anúncio é mencionado, a chamar a atenção para a peculiar exigência, perguntando se a interlocutora “leu bem a descrição.” E acrescenta, para que não haja dúvidas sobre aquilo a que se refere: “Só quero uma família tradicional”.
“A casa é deles, exigem o que quiserem”
DN: O que é que isso quer dizer, “família tradicional”?
Nelson: “É o marido, mulher, com filhos ou sem filhos… Neste caso com filhos, porque é um T5, tem de ser com filhos, não é?”
DN: Mas o anúncio diz “com ou sem filhos.” Que quer dizer “família tradicional? Têm de ser pessoas casadas, é isso?
Nelson: “Não, não é preciso serem pessoas casadas. Esse não é o caso. O que interessa é que os senhorios são muito exigentes e seletivos. E não vale a pena estarmos a perder tempo.”
DN: Mas então se não são casados têm de ser homem e mulher? Não podem ser por exemplo duas mulheres? Duas amigas? Duas namoradas?
Nelson: “Não aceitam nem duas amigas nem duas namoradas nem dois namorados, não aceitam. Basta ser duas pessoas que eles desconfiam logo que é para subarrendamento, para que é que duas pessoas querem cinco quartos? Não vale a pena insistir, que é só perder tempo. A casa não é minha, não sou eu que estou a fazer estas exigências.”
“Não aceitam nem duas amigas nem duas namoradas nem dois namorados, não aceitam. Não vale a pena insistir, que é só perder tempo. A casa não é minha, não sou eu que estou a fazer estas exigências.”
DN: As pessoas podem até escrever “só queremos brancos” mas isso não pode ser, tem noção?
Nelson: “Então se a casa é deles.”
DN: Mas existem leis, as pessoas não podem discriminar em função desse tipo de características. O que é uma família tradicional sem filhos, quer esclarecer?
Nelson: “Não vale a pena insistir, eu já conheço os proprietários há cinco anos, são pessoas muito abastadas, são casas de família, eles não têm interesse em arrendar.”
Desliga.
O DN volta a ligar, para esclarecer que o telefonema foi efetuado por uma jornalista e que o assunto não ficou esclarecido. Mas “Nelson” diz não poder falar e remete mais esclarecimentos para o dia seguinte.
“Exigência é discriminatória”
A empresa em causa é associada da APEMIP, Associação dos Profissionais e Empresas de Mediação Imobiliária de Portugal. O respetivo presidente, Luís Carvalho Lima, manifesta ao DN a sua surpresa: “Desconhecia a existência de anúncios dessa natureza.” E prossegue: “Independentemente de ser ou não uma empresa associada da APEMIP há bons e maus profissionais em todas as áreas. Essa exigência é discriminatória e a APEMIP não se revê nem reconhece este tipo de anúncios, mesmo que reflitam exigências do proprietário. A habitação é um direito para todos e é eticamente reprovável que haja anúncios dessa natureza.” Questionado sobre se a associação a que preside vai fazer alguma diligência, esclarece que “irá contactar a empresa associada em questão.”
“A APEMIP não se revê nem reconhece este tipo de anúncios, mesmo que reflitam exigências do proprietário. A habitação é um direito para todos e é eticamente reprovável que haja anúncios dessa natureza.”
A discriminação, no caso, diz respeito a famílias consideradas “não tradicionais”. Talvez mães ou pais solteiros com filhos? Ou, mais provavelmente, casais do mesmo sexo, com ou sem filhos? Qualquer das exclusões é discriminatória, mas a segunda é proibida expressamente pela Constituição desde 2004, quando a orientação sexual foi incluída no artigo 13º, como uma das categorias ditas “suspeitas”, ou seja, aquelas em relação às quais, historicamente, se verificaram discriminações, perseguições, exclusões. Como a etnia, ou “raça”, a religião e o género.
Poderá assim dizer-se que a Constituição proíbe que o proprietário de um apartamento exclua prospetivos arrendatários em função da sua orientação sexual? O constitucionalista Jorge Reis Novais acha que não: no seu entender, a Constituição não obriga os privados, só o Estado. Mas, sublinha, “um episódio destes obriga os órgãos do Estado a ver o que podem fazer sobre isso, e agir, porque poderá estar em causa uma discriminação em função da orientação sexual.”
“A lei não ajuda o bom senso”
Ou seja, o Estado pode (e deve) fazer leis que especificamente punam a discriminação em função da orientação sexual no acesso a estes bens ou serviços. Que é, diz Marta Ramos, diretora executiva da ILGA Portugal, associação que pugna pela promoção dos direitos de pessoas LGBT (lésbicas, gays, homossexuais e transgénero), algo que o Estado ainda não fez. “É claro que o anúncio é discriminatório, o mero bom senso diz isso. Mas a lei não ajuda o bom senso.”
Porque, explica, apesar de existir por exemplo uma lei que proíbe expressamente que se façam anúncios de apartamentos para arrendar “só para brancos”, não existe uma lei que proíba anúncios como o descrito. “A verdade é que não há proibição de discriminação em função da orientação sexual. Desde 2012 que andamos a reivindicar o alargamento do enquadramento jurídico português para todas as situações de discriminação, que aliás é uma recomendação do Conselho da Europa. No programa deste governo está um livro branco para uma lei-quadro antidiscriminação, mas não se avançou até agora. É preciso acabar com estes buracos que existem entre áreas de discriminação e áreas em que as pessoas possam ser discriminadas.”
“A verdade é que não há proibição de discriminação em função da orientação sexual. Desde 2012 que andamos a reivindicar o alargamento do enquadramento jurídico português para todas as situações de discriminação, que aliás é uma recomendação do Conselho da Europa.”
Trata-se, concorda Reis Novais, de “uma omissão do legislador que está a desproteger uma categoria suspeita que foi colocada expressamente na Constituição para ficar em pé de igualdade com as que lá estavam.” E aqui, do seu ponto de vista, a Constituição é chamada por “eventual omissão dos poderes públicos, ainda mais clara por existirem leis que protegem outras categorias suspeitas.”
Proibido nos hotéis, admitido no arrendamento?
Marta Ramos não conhece nenhum caso de anúncio de arrendamento como o descrito. Mas lembra o do hotel minhoto que no seu site, até 2016, anunciava a proibição de admissão de “gays e lésbicas.”
“Estimado hóspede”, dizia o aviso, “caso se encontre numa das quatro situações abaixo indicadas, queira fazer o favor de não prosseguir com a sua reserva, ou de a cancelar caso a mesma já tenha sido concretizada, sob pena de ser vedada a admissão às nossas instalações: adeptos de futebol; frequentadores/adeptos de festivais de música de verão; gays e lésbicas; consumidores de estupefacientes e quaisquer substâncias psicotrópicas.” Contactado pelo DN, que revelou a existência do anúncio, o proprietário do hotel justificara-o nos mesmos termos que o mediador imobiliário supracitado: “Sou dono dos estabelecimentos e sou eu que defino quem é o cliente que quero, e quem quero excluir e incluir. Se quero altos ou magros, gordos ou baixos.”
“Há uma omissão do legislador que está a desproteger uma categoria suspeita que foi colocada expressamente na Constituição para ficar em pé de igualdade com as que lá estavam. E eventual omissão dos poderes públicos, ainda mais clara por existirem leis que protegem outras categorias suspeitas.”
Porém foi logo na semana seguinte obrigado pela Autoridade de Segurança Alimentar e Económica a alterar o site, por “violação do princípio legal do livre acesso aos estabelecimentos turísticos”, tendo sido instaurado um processo de contraordenação.
Conclui-se assim que se é inadmissível legalmente a um hotel estabelecer como critério de admissão “só famílias tradicionais” (seja lá isso o que for), nada na lei impede a expressão da mesmíssima discriminação num anúncio de arrendamento – uma discriminação que também pressupõe uma violação da reserva da vida íntima (outro direito fundamental consagrado na Constituição), ao questionar o tipo de relação de candidatos a arrendatários.
Nada a fazer, portanto? A presidente da Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género, Teresa Fragoso, considera que sim, caso se confirmasse a existência da discriminação: “Deveria ser apresentada queixa à CIG ou ao organismo com competência na área de discriminação identificada, a fim de se proceder a apresentação da mesma junto das devidas instâncias.”
“O entendimento de famílias tradicionais não é claro mas a forma como está descrito também não perfaz ilícito de discriminação direta ou indireta. Nesse sentido, e do texto do anúncio, não se pode inferir discriminação direta ou indireta com base no sexo ou na orientação sexual.”
Mas a análise da CIG não vai no sentido de existir um intuito discriminatório no anúncio. “O entendimento de famílias tradicionais não é claro mas a forma como está descrito também não perfaz ilícito de discriminação direta ou indireta”, diz a resposta escrita enviada ao DN, que submeteu o texto do anúncio àquele organismo. “A frase vem no seguimento de outra onde se lê que: “Os senhorios não aceitam subarrendamento de qualquer espécie, partilha com estudantes ou trabalhadores”. Tal poderá levar, por exemplo, à interpretação de que a preocupação do/a proprietário/a se prende com o tipo/propósito do arrendamento, ou seja, unidade de arrendamento para residência permanente e unifamiliar, e não negócio de arrendamento de quartos “à peça” ou por períodos curtos. Nesse sentido, e do texto do anúncio, não se pode inferir discriminação direta ou indireta com base no sexo ou na orientação sexual.”