Médicos de família. Ordem quer que consultas durem pelo menos meia hora
A Ordem dos Médicos definiu os "tempos-padrão para as consultas médicas" em várias especialidades. Deverá ser aplicado até ao final deste ano nos setores público, privado e social
O tempo de uma consulta no médico de família é em média de 15 a 20 minutos, consoante a unidade de saúde. Agora o doente pode ter o dobro do tempo (ou mais) com o seu médico, entre 30 e 45 minutos. Esta é uma das muitas recomendações da Ordem dos Médicos no documento em que define os “Tempos-padrão para as consultas médicas” em várias especialidades, e que se traduzem no tempo de marcação entre consultas.
O objetivo é melhorar e “proteger a relação médico/doente, a qualidade da medicina, aquilo que são os direitos dos doentes e a qualidade do trabalho dos médicos”, explica o bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães, no encontro com os jornalistas em que foi divulgado o documento, conhecido nesta segunda-feira, Dia Mundial do Doente. Tempos-padrão para serem aplicados em consultas nos setores público, privado e social, seja em centros de saúde ou em hospitais.
Para o médico urologista, “é evidente que 15 minutos como tempo padrão para primeira consulta em medicina geral e familiar é baixo”. Com esta proposta, a Ordem pretende reverter a atual situação para que haja mais tempo para o médico e também para o doente nos cuidados de saúde primários e nos centros hospitalares. Uma intervenção que teve o contributo dos Colégios da Especialidade da ordem e que é também uma forma de melhorar a “organização do trabalho” nas instituições de saúde.
Além da medicina geral e familiar, em que atualmente não existe uma diferenciação, todas as consultas são marcadas com o mesmo tempo, o bastonário destaca as consultas da especialidade de dermatologia. “O Colégio teve a preocupação de enquadrar os tempos com as novas tecnologias, da teledermatologia, com tempos mais curtos quando não há presença de doente.”
Já nas especialidades cirúrgicas, “os tempos de uma forma geral são mais reduzidos do que os de consulta das especialidades médicas”. O documento da Ordem para discussão pública “vem consagrar que há especialidades que têm de ter mais tempo com os doentes. A psiquiatria é um bom exemplo”.
Nos hospitais, explica o médico Alexandre Valentim Lourenço, presidente do Conselho Regional do Sul da Ordem, há uma média de marcações de 15 em 15 minutos para qualquer especialidade. O que se pretende com estas propostas que irão, no final, constituir um regulamento, é definir os tempos adequados para cada especialidade.
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Na medicina interna, por exemplo, o tempo padrão proposto para primeira consulta é de 40 a 60 minutos, na oncologia médica é de 60 minutos, na pediatria são definidos 45 minutos, o mesmo para psiquiatria. 30 minutos para doenças infecciosas, ginecologia/obstetrícia, endocrinologia e nutrição.
Estes são apenas casos de algumas das especialidades que constam no documento de definição dos tempos-padrão das consultas médicas, um dos objetivos do programa eleitoral de Miguel Guimarães quando se candidatou a bastonário da Ordem, cargo que desempenha há dois anos. “Proteger” e “humanizar” a relação médico/doente” para que exista, “sobretudo, mais qualidade em todo este processo”.
Depois de discussão pública, regulamento é publicado em Diário da República
“Tempos-padrão para as consultas médicas” é, explica a Ordem, um documento que é ponto de partida para uma fundamentação tão consensual quanto possível e, nesse sentido, a proposta vai estar em discussão pública a partir desta semana e durante 30 dias, estando aberta às contribuições de médicos e cidadãos.
Após serem recolhidos e analisados os contributos, a Assembleia de Representantes, o órgão máximo da Ordem, aprova a versão final do documento, sendo depois publicado como regulamento no Diário da República, II Série. Documento final esse que será enviado ao Ministério da Saúde, aos parceiros da Ordem e a todas as unidades de saúde públicas, privadas e do setor social.
Bastonário prevê que tempos sejam aplicados ainda neste ano
Miguel Guimarães sublinha que “os médicos e os próprios doentes acabam por ter aqui uma proteção, porque compete à Ordem dos Médicos ser a responsável pelas boas práticas”, que, afirma, começam na relação médico/doente.
Assim que for publicado, o regulamento tem efeitos imediatos, mas o bastonário prevê que haja um tempo de adaptação. Espera, no entanto, que até ao final deste ano os tempos-padrão já estejam a ser postos em prática nas unidades de saúde.
50% das queixas dos utentes são de comunicação
Alexandre Valentim Lourenço esclarece que se denomina tempos-padrão uma vez que “há consultas que são um pouco mais rápidas e outras que demoram mais”. E exemplifica: “Há pessoas que posso ver em 12 minutos e outras em que preciso de meia hora. Só que muitas das reclamações, conflitos que temos e queixas prendem-se, muitas vezes, com a falta de tempo e com o facto de o doente não ter tido o tempo suficiente para falar com o médico.”
O presidente do Conselho Regional do Sul da Ordem refere que, no ano passado, cerca de 50% das queixas, que chegam através da Entidade Reguladora da Saúde (ERS), “são de comunicação”. De doentes que fizeram queixa porque não tiveram tempo suficiente na consulta, não conseguiram explicar-se devidamente ao médico. “Muitos dos problemas que temos é falta de tempo para comunicar e daí necessitarmos de proteger o tempo de comunicação”, defende Alexandre Valentim Lourenço. Em 2018, conta o responsável, em 700 queixas recebidas na região sul da Ordem, cerca de 300 eram relacionadas com a comunicação.
Humanização dos cuidados de saúde
Para o bastonário “há um claro aumento de conflitualidade que tem que ver com a pressão que existe sobre os profissionais de saúde”, neste caso em particular os médicos, relacionado “com os tempos curtos de consulta que levam a tempos de espera para os doentes”.
Nesse sentido considera que os tempos adequados são “um passo muito importante para diminuir esta conflitualidade” e assim “melhorar ou aumentar as competências de comunicação dos médicos e daquilo que é no fundo a humanização dos cuidados de saúde”. Competências que deveriam ser reforçadas na formação pré e pós-graduada dos médicos, defende o bastonário.
Para esta definição, Miguel Guimarães pediu o contributo dos Colégios da Especialidade, tendo como base “a história clínica” do doente, “o exame físico”, a necessidade de fazer ou não exames complementares de diagnóstico, a utilização dos serviços informáticos, “que consomem atualmente demasiado tempo”.
Foi também contemplado para a elaboração do documento o tempo que os médicos necessitam para esclarecer dúvidas, e, sobretudo, realça Miguel Guimarães, “o tempo de explicarem muito bem ao doente aquilo que é a sua situação clínica e o que vão fazer”. Quer seja a razão pela qual precisa ou não de fazer tratamentos, de discutir os que existem, “explicar as vantagens, eficácia e as possíveis complicações”. Tudo para que no fundo se possa “obter aquilo a que se chama consentimento informado, um instrumento legal”,explica.
Tudo isto demora muito tempo e, quem pensa o contrário, “pensa mal”, destaca o bastonário, que defende a necessidade de existir “empatia entre as pessoas”. “É uma questão do doente perceber exatamente aquilo que o médico lhe está a propor fazer.”
Regulamento implica aumento de número de médicos e listas de doentes reduzidas
Consultas mais demoradas vão ter necessariamente implicações no funcionamento das instituições. Nos centros de saúde, por exemplo, os médicos de família já se confrontam com o problema das listas enormes de doentes. “Têm de ter menos utentes”, diz, sem hesitar, Miguel Guimarães. “Toda a gente já reconheceu isto, todos os ministros que têm estado no Ministério da Saúde reconheceram.”
O número de utentes para cada médico de família é de 1550, um valor que era praticado antes da entrada da troika em Portugal. Agora são cerca de 1900 utentes na lista de cada médico. “Isto já devia ter sido regularizado”, lamenta o bastonário.
Com a implementação dos tempos-padrão para as consultas médicas, “os doentes têm de ter mais espaço, ou seja, as marcações têm de ter um espaço maior”. No caso dos hospitais, defende o bastonário, “têm de ter mais médicos para manterem o mesmo nível de consultas ou têm de ter mais consultas abertas”.
Ainda assim, o responsável pela Ordem não espera “resistência” “numa matéria tão importante nas boas práticas como esta”.
“É no mínimo complexo, seja para o governo, seja para os conselhos de administração, não se adaptarem àquilo que é a melhoria, a proteção do tempo que os doentes têm com os seus médicos”, afirma ao mesmo tempo que assegura que o que está neste documento “é feito com pés e cabeça”.
E do lado dos doentes não há margem para dúvidas. “Tenho a certeza de que vão acolher bem a ideia de terem mais tempo com o seu médico.”
Regras estão sempre a ser quebradas no SNS, diz bastonário
As propostas de tempos-padrão para as consultas médicas vão ser alvo de discussão pública e pode até existir a necessidade de “afinações”, mesmo por parte dos Colégios da Especialidade, explica o bastonário. No entanto, depois de aprovado o documento final é publicado em Diário da República como regulamento e entra logo em vigor.
Mas tem carácter obrigatório? Alexandre Valentim Lourenço explica: “A lei obriga que todos os estatutos da Ordem, que sejam estruturantes, sejam publicados [em Diário da República] e passam a ser normas internas que têm aplicação em tudo o que é atividade médica.”
É, no fundo, um “conjunto de regras para cumprir”, esclarece o bastonário, que também admite o contrário. “Agora que as pessoas podem não as cumprir, podem. Como está sistematicamente a acontecer no Serviço Nacional da Saúde”, acusa.
E dá exemplos, como o da Maternidade Alfredo da Costa, em Lisboa, em que no Natal só tinha um anestesista de serviço. Mas também o caso da urgência pediátrica do Hospital Garcia de Orta que só tem um especialista “muitas vezes sozinho à noite”.
“Quem não está a cumprir não são os médicos, é o sistema de saúde”, assegura Miguel Guimarães.
Médicos estão sempre a trabalhar em cima da linha vermelha
Perante este cenário, o bastonário da Ordem avança: “Vou alertar os médicos todos que não devem aceitar trabalhar em condições que não lhes ofereça completa segurança clínica.” Até porque, garante, para ajudar os médicos estão sempre “a trabalhar em cima da linha vermelha”. “Não vejo muita vontade do Ministério da Saúde em resolver a situação.”
Miguel Guimarães explica que sempre que a Ordem tem conhecimento deste tipo de situações no SNS atua e faz denúncia pública, como aconteceu mais recentemente com o Hospital Garcia de Orta. E, apesar de não concretizar, deixa um aviso. “Tenho neste momento mais dez denúncias públicas para fazer.”
Elevar relação médico/doente a património imateral da UNESCO
Inserida nesta perspetiva de melhorar a qualidade e a humanização dos cuidados de saúde, como acontece com a definição dos tempos-padrão para as consultas, a Ordem dos Médicos portuguesa e a espanhola estão a liderar o processo de elevar a relação médico/doente a património imaterial da UNESCO – Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura.
Trata-se de um processo que demora, pelo menos, dois anos, explica o bastonário.
A ideia de candidatar a relação entre médico e doente a património imaterial da UNESCO partiu da Ordem dos Médicos de Espanha à qual se juntou a de Portugal. “É um processo difícil que implica uma cooperação internacional e é isso que nós vamos também fazer”, reconhece Miguel Guimarães. “O objetivo é agregar países de cinco continentes para que a candidatura possa de facto ter sucesso e ser bem acolhida”, afirma.