Máscaras e viseiras “invadem” pomares de cereja no Fundão. Produtores de cereja do Fundão pedem apoio ao Governo
José Manuel tem 61 anos e colhe cerejas há mais de 20. Nunca imaginou fazê-lo de máscara ou viseira, mas aceita a "dificuldade" em nome da proteção e de uma colheita segura nos pomares do Fundão.
“Isto é difícil. Hoje aguenta-se, porque está fresco, mas quando o calor apertar vai ser um pandemónio. Agora, se tem de ser, tem de ser e se todos formos cautelosos a coisa correrá pelo melhor”, relata este trabalhador, em declarações à agência Lusa.
José Manuel Filipe cumpre o primeiro dia de trabalho num pomar de uma das encostas da Gardunha. Pela manhã, por causa da prevenção contra a covid-19, foi “brindado” com novas ferramentas de trabalho.
Se antes bastava um balde ou a típica cesta de verga, o gancho para prender ou até mesmo a escada para subir às árvores mais altas, agora é preciso incluir máscaras, desinfetante, sabão azul e a necessidade de um maior distanciamento ou a lavagem ainda mais frequente das mãos.
As recomendações foram transmitidas aos produtores de Cereja do Fundão pelas organizações de produtores e estão patentes no Código de Boas Práticas para a Colheita de Produtos Hortofrutícolas, elaborado pela Câmara do Fundão, que também distribuiu quatro mil máscaras comunitárias para o uso na colheita.
No pomar em que José Manuel Filipe trabalha, antes mesmo de as regras serem anunciadas, já se estava a preparar medidas de proteção.
“Fizemos um ‘kit’ com duas máscaras, uma viseira, um frasco de álcool, um frasquinho de álcool gel e dois pares de luvas para cada trabalhador”, explica a fruticultora Sara Martins.
Também ela usa máscara e está consciente do incómodo, mas apela aos trabalhadores que colaborem para evitar “males maiores”.
Já o uso de luvas, que pede aos trabalhadores do armazém, é facultativo para a apanha, porque no limite poderia impedir a execução da tarefa principal.
“Bastava prenderem num galho para se rasgarem e também perdíamos a sensibilidade. É preciso despachar os dedos e ainda estragávamos a fruta”, diz Silvina Filipe, outra trabalhadora que optou por usar a viseira para evitar andar sempre com os óculos embaciados.
Ainda se está a adaptar e a ver se encontra uma forma de os ramos das árvores baterem menos nas viseiras.
A covid-19 acaba por dominar as conversas, com os trabalhadores a assumirem preocupação com a pandemia, mas a mostrarem-se mais tranquilos por trabalharem num concelho onde há poucos casos de infeção e por estarem ao ar livre.
A empresa “Frutas Sintra da Beira” segue a linha da prevenção. No pomar do “Anjo da Guarda”, por entre os ramos das árvores, mal se descortinam os rostos escondidos nas máscaras de várias cores.
Ali, a colheita começou na segunda-feira e Graça Grilo pensou que não ia habituar-se. Ressente-se um “bocadinho” da sensação de falta de ar e do calor, mas ao fim de alguns dias já diz que “até podia ser pior”.
Aceita a nova medida de proteção, porque não ir trabalhar não era opção e “já chegou” o tempo em que mal saiu por causa da pandemia.
Lurdes Xavier (que é uma das proprietárias do pomar) lembra que, com cautela, “tem se continuar a viver” e salienta que muitas das regras já eram seguidas, nomeadamente no armazém e no tratamento da fruta.
Noutra árvore, a máscara volta a ser tema, com Luís Barata e Joaquim Grilo a assumirem que usar a máscara causa “desconforto”, mas a garantirem que a “responsabilidade” vai falar mais alto e que não vão ceder à vontade de a tirar, a não ser para comer alguma cereja.
Foi ainda instituído um maior distanciamento entre trabalhadores, mas as conversas resistem e há sempre quem mantenha a boa disposição que dá ânimo para o trabalho.
“Isto é ainda mais complicado, porque falta o limpa para-brisas para os óculos”, brinca Maria Libéria, que anda a colher fruta para Patrique Martins, num pomar onde as ações de prevenção também foram implementadas.
Esta trabalhadora e restantes membros da equipa admitem que o uso de máscara é um “sacrifício”, ressalvando que “se é para cumprir, cumpre-se”.
Dina Martins acrescenta que é para o “bem de todos”, numa tentativa de se conformar, porque também ela partilha as queixas do calor e transpiração que a máscara provoca.
“No fim disto, ainda ficamos com orelhas de abano”, diz, em tom divertido.
Além disso, não ir trabalhar “não era uma hipótese”, como frisa João Simões.
Habituados à dureza do trabalho do campo, estes e muitos outros trabalhadores que ao longo dos meses se vão espalhar pelos pomares do concelho enfrentam mais este desafio como um contributo que ajuda o país a não parar.
Produtores de cereja do Fundão pedem apoio ao Governo devido a quebras entre 50% a 70%
Os produtores de Cereja do Fundão apelam à intervenção do Governo para ajudar a minimizar os “elevados prejuízos” que vão ter devido a quebras de produção entre os 50 a 70% provocadas pelas condições meteorológicas “extremas” deste ano.
“Isto não é provocado pela pandemia, mas as consequências são semelhantes. É um carrossel. Nós perdemos, os trabalhadores perdem e a economia local perde. Quem de direito tem mesmo de olhar para isto”, apontou à agência Lusa Luís Xavier, proprietário da empresa “Frutas Sintra da Beira”, localizada em Alpedrinha, concelho do Fundão, distrito de Castelo Branco.
Considerada a principal zona de produção de cereja a nível nacional, o Fundão registou este ano condições meteorológicas “extremas”, entre final de março e início de abril, com neve, chuva intensa, queda de granizo e geada fora de tempo.
Numa primeira estimativa, a Câmara do Fundão apontou para perda global de cereja superior a 50%. Todavia, os danos têm vindo a avolumar-se e há produtores a apontarem quebras que podem ultrapassar os 70%.
A Cerfundão, organização de produtores do concelho, começou a receber cereja esta semana e também já prevê um decréscimo na ordem dos 70%.
“Este será um ano muito complicado. Temos uma pandemia comunitária e uma calamidade na produção, pelo que teremos um grande desafio pela frente, sempre focados na qualidade e valorização”, resume o diretor comercial da Cerfundão, Luís Pinto.
Luís Xavier tem a produção reduzida a cerca de dez toneladas: “É preciso um coração de aço”, diz, enquanto aponta para o pomar. Há árvores praticamente despidas, outras com cereja rachada e outras em que o fruto não chegou a formar-se, porque “abortou”, devido à chuva.
A produzir cereja há 15 anos, Patrique Martins não se lembra de um ano tão difícil e também apela à intervenção do Governo. Sugere a possibilidade de um valor por hectare, porque “todas as ajudas serão poucas”.
Se tudo tivesse corrido bem, este produtor poderia ter uma produção de 75 toneladas. Assim, não conta passar das 20 a 25, se o tempo não trouxer mais complicações.
Além disso, a campanha deste ano terá menos gente a trabalhar, será mais curta e a economia local perderá, já que a produção de cereja injeta dinheiro direta e indiretamente nos negócios da região.
Sara Martins também espera que a tutela possa olhar para esta situação.
“Para a prevenção da covid-19, ainda pudemos comprar máscaras e viseiras. Já quanto ao tempo, não conseguimos fazer nada. Não está nas nossas mãos”, lamenta.
Com 11 hectares de pomar instalados há apenas seis anos, esta seria a primeira campanha em que Sara Martins teria uma produção em pleno. Contava chegar às 30 toneladas. Agora, a estimativa não ultrapassa as dez, “ou menos”.
“A previsão meteorológica dá chuva e trovoada para dez dias seguidos. Até o que vingou está em risco”, frisa, lembrando que, tal como em muitos casos no concelho, este projeto é a única fonte de rendimentos para ela e para Hugo Ramos (o marido). E que as contas “vão continuar a chegar”.
Ao nível da comercialização, estes produtores acreditam que a cereja será escoada, até porque haverá menos e a que vingou mantém a qualidade, mas estão ainda apreensivos com o impacto que a crise pandémica possa ter no poder de compra e no preço final do produto.
De acordo com a autarquia local, a produção de cereja representa mais de 20 milhões de euros anuais na economia local. Num ano normal, poderá chegar às sete mil toneladas, este ano ficará pelas três mil. Ou menos.