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Júlio Pomar. O dia em que o pintor já não subiu as escadas

Jornal i

Com uma obra a desdobrar-se entre a pintura, o desenho, a gravura, a escultura, a tapeçaria, entre outros, Júlio Pomar era o maior ícone vivo da pintura portuguesa. Morreu ontem, em Lisboa. Tinha 92 anos

Todos os dias Júlio Pomar subia as escadas que separavam a sua casa do seu ateliê, situado nas águas furtadas. Todos os dias e já depois dos 90 anos Júlio Pomar continuava a pintar. O dia em que deixasse de poder subi-las, dizia, era o dia em que tudo estava prestes a acabar. Não fica longe do primeiro lugar onde se lembra de ter morado, nas Janelas Verdes, esse edifício que era o da sua casa, o mesmo em que continuará a ser celebrado, no Atelier-Museu Júlio Pomar. Honra a que poucos chegarão em vida, mas Júlio Pomar era um desses. Como poucos. Com uma obra que, desdobrada entre a pintura, o desenho, a gravura, a escultura, a tapeçaria, os trabalhos de cenografia, atravessou movimentos – do neorrealismo em que começou até chegar a esse lugar que era só seu, com técnicas que o aproximavam já do abstracionismo – Júlio Pomar até ontem o maior ícone vivo da história da pintura em Portugal.

A prova é que assim que recebeu a notícia do seu desaparecimento, aos 92 anos, o Presidente da República o recordou “não apenas como pintor, desenhador, mas como uma grande figura da cultura portuguesa”, com a “certeza” de que o governo não deixaria de decretar o “luto nacional correspondente”.

Nascido em Lisboa 10 de janeiro de 1926, Júlio Pomar passou os primeiros anos da infância num quarto andar da Rua das Janelas Verdes, com o Tejo como pano de fundo. Foi quando o perdeu, ao Tejo e a todo o seu “espetáculo permanente”, na mudança para as Avenidas Novas, aos 7 anos, que “qualquer coisa desapareceu”, como recordava no início de 2016 numa entrevista ao B.I., na véspera de completar 90 anos. “Foi um grande corte na minha vida, houve qualquer coisa que desapareceu e passou a viver só na memória. Fiquei como um miúdo que se foi fechando e que começou a desenhar. Os bonecos começaram assim.”

Daí até ao dia em que vendeu a sua primeira obra, a nem mais nem menos do que Almada Negreiros, não se passariam tantos anos assim. Foi aos 17 anos, numa exposição improvisada com colegas das Belas Artes, numa sala de um terceiro andar da Rua das Flores que usavam como atelier. “Como não se passava nada em Lisboa as pessoas foram todas, os monstros sagrados: o Almada, o diretor do Museu de Arte Antiga… e outros. Claro que havia uma certa qualidade, mas o que ajudou sobretudo foi a pasmaceira do meio cultural português.”

Contra o regime salazarista, tornou-se entretanto membro da comissão central do Movimento da Unidade Democrática Juvenil, o que lhe valeu quatro meses de prisão, em Caxias. Foi aí que conheceu Mário Soares, parceiro de cela e amigo para toda a vida. Em janeiro de 2016, na entrevista que deu ao B.I. e que republicamos nesta edição, contava como de vez em quando ainda lhe aparecia em casa, na Rua do Vale, contígua ao Atelier-Museu. Morreria um ano depois. De uma amizade de mais de 70 anos ficaria o retrato que a par de “O Almoço do Trolha”, em 2015 leiloado por 350 mil euros, marcaria a história da pintura portuguesa da segunda metade do século XX.

Um retrato para a história O retrato oficial de Soares despertou, como se diria hoje, sentimentos mistos. Era a primeira vez que um Presidente da República aparecia representado com informalidade, sem a pompa inerente ao cargo. Tratava-se sem dúvida de uma lufada de ar fresco na galeria do Palácio de Belém, mas muitos consideraram-no “um esboço”, não uma obra acabada digna de ser exibida na galeria do palácio de Belém. Na descrição que fez ao “Sol” na mesma conversa, era Soares a acordar de uma das suas famosas sestas.

Numa entrevista a Sara Matos e Joana Vasconcelos, em 2004, para o “Jornal de Letras” ironizava: “Dantes a crítica eram umas celebridades que tocavam várias gaitas. Depois, começou a haver uma crítica especializada, encartada. E sempre apanhei porrada desses senhores e espero continuar a apanhar, porque é bom sinal”.

O primeiro retrato de Soares tinha-o feito ainda na prisão, que o obrigou a interromper a pintura de o célebre painel do Cinema Batalha, no Porto, que a censura mandou destruir dois anos depois – recentemente Rui Moreira tinha-o convidado para o recuperar, como parte das obras de reabilitação da sala portuense.

Esses quatro meses em Caxias, um “período de convivência com gente de qualidade”, uma “grande escola”, talvez maior do que as Belas Artes de Lisboa, que depressa trocou pelas do Porto (“a escola de Lisboa tinha um diretor que era um arquiteto mas cuja obra única de arquitetura eram as instalações sanitárias de uma estação de caminhos de ferro e que era um selvagem”, e referia-se a Luís Alexandre Cunha, conhecido como “Cunha Bruto”) marcariam a sua biografia de forma definitiva. Assim como a amizade com Mário Soares, que na campanha para as presidenciais de 1949 o apresentou ao general Norton de Matos, que retratou na altura para acabar despedido da Afonso Domingues, onde dava aulas.

A pintura a tempo inteiro A partir daí, começaria a pintar a tempo inteiro, e cada vez mais, até dar por si a não poder fazer outra coisa. E se a venda daquela primeira pintura, o “cartãozinho” que lhe comprou Almada Negreiros, não lhe deu para muito mais do que para “umas tintas”, a venda de “O Almoço do Trolha” (1946-50) serviu já para pagar a ida para Paris, em 1963, já mais distante do ativismo político, e numa nova fase para a sua obra, a libertar-se do movimento neorrealista que ajudou a afirmar em Portugal, partindo, como descreve João Fernandes em “Júlio Pomar e a sua cadeia das relações” (Civilização Editora, 2008) para a “exploração de práticas pictóricas diversas que o centrarão na pintura enquanto tal, interrogando as suas formas, composições e processos, pintando das mais variadas maneiras na exploração ou na recusa das possibilidades que o seu tempo lhe abriu”.

Nos anos seguintes, e entre o conturbado Maio de 68, começaria a expor com regularidade tanto em Paris como em Lisboa, na Galeria 111, de Manuel de Brito, que passou a representá-lo em Portugal. “Era um amigo”, diz ao i a galerista Arlete Alves da Silva, que conheceu Pomar de perto. “Eu e o meu marido [Manuel de Brito, fundador da 111] até fomos os padrinhos do casamento dele com a Teresa Marto e passámos muitas férias juntos e viajámos muitas vezes”, recorda. A relação começou ainda na década 60, num período “difícil” em que a galeria era alvo frequente de raides da PIDE. Foi a de 30 de maio de 1967 que a 111 inaugurou a sua primeira de muitas exposições do artista então sediado em Paris.

Seria, aliás, o Centro de Arte Manuel de Brito a adquirir, quase 50 anos depois, a pintura “O Almoço do Trolha”, pelo valor recorde de 350 mil euros. “Foi uma pessoa muito dedicada ao seu trabalho, o trabalho fazia intrinsecamente parte da sua vida”, continua a galerista, que testemunhou em primeira mão o quotidiano do artista. “Uma vez estivemos a passar férias no Algarve. Ele levantava-se e ia pintar sem sequer ter tomado o pequeno-almoço. Depois ia à praia e voltava para pintar. Nunca separava a pintura da vida”, resume. “Era feliz assim”.

Quem também assistiu de perto ao processo criativo foi o filho, o pintor Vítor Pomar, que em julho de 2016, a propósito de uma exposição conjunta, falava do “vai-e-vem em frente ao cavalete, que constitui o seu modus operandi principal, e que por si só é determinante de uma pintura construída e vertical”. “Eu tinha seis anos quando os meus pais se divorciaram” e havia “uma diferença de ver, da maneira de pensar e de pintar”, reconhecia na altura. Outro dos filhos do pintor é o jornalista e crítico de arte Alexandre Pomar, com quem manteve sempre uma relação mais estreita. Um terceiro filho, Pedro Jorge Pomar, morreu em 2012, aos 52 anos, na sequência de um incêndio.

Diria ainda Vítor Pomar, há dois anos: “Cada um tem o seu caminho, o que não implica obrigatoriamente rejeição ou desacordo. Agora que o Júlio completou 90 anos de idade e que eu completarei 70 dentro de dois anos, a distância entre nós parece mais diminuta do que nunca”.

Naquela véspera de fazer 90 anos em que o encontrámos, Júlio Pomar continuava ativo e a trabalhar todos os dias no ateliê que ocupava as águas-furtadas da sua casa. “No dia em que não subir ao ateliê e não me interessar por aquilo que estou a fazer é muito mau sinal.” E tinha razão. No último ano já não podia pintar e ia dando sinais de uma crescente debilidade física. Morreu ontem no Hospital da Luz, uma notícia que não surpreendeu a família e amigos – os internamentos hospitalares, de resto, tinham-se tornado cada vez mais frequentes.

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