O Relatório Primavera, do Observatório Português dos Sistemas de Saúde, deixa muitas criticas à primeira metade desta legislatura
Medidas de saúde pública ainda por tomar para responder a uma população que envelhece sem saúde; cobertura insuficiente de centros de saúde; setor hospitalar endividado e à beira de um ataque de nervos; cuidados continuados com pequenos desenvolvimentos menores; política do medicamento pouco compreensível e aparentemente em regressão. Este é o quadro em tons escuros pintado pelo Observatório Português dos Sistemas de Saúde no Relatório Primavera deste ano, que é apresentado hoje em Lisboa. Um documento que nas suas quase 200 páginas deixa muitas críticas à primeira metade desta legislatura, algumas propostas e poucos elogios ao Governo.
Mas os pontos negativos não vão todos para o executivo. Há médicos que são criticados por ser deixarem ir em “estratégias de comercialização de medicamentos”, na altura da prescrição; é apontado o dedo ao excesso de cesarianas nos hospitais portugueses, em especial nos privados, em que 6 em cada 10 partos acabam numa cirurgia; e até na escolha dos administradores hospitalares é sublinhado um peso excessivo da confiança política. Tudo somado, chega-se à conclusão, à boleia de Drummond de Andrade, “que no meio do caminho tinha uma pedra”.
E as pedras no caminho começam desde logo nos cuidados de saúde primários, onde há uma “dissonância” entre o discurso oficial de serem uma prioridade política do governo e a prática, que mostra que o ano de 2017 foi o pior até agora na evolução das Unidades de Saúde Familiar (USF). No final do ano passado, o país tinha 505 USF, mas precisa de cerca de 850 e a manter-se a promessa – não cumprida, salienta o estudo – de criar 25 unidades por ano, só depois de 2030 “seria atingida a equidade no acesso”. “A perpetuação de Cuidados de Saúde Primários (CSP) em ‘dois níveis’ é inaceitável, considerando que os CSP são o primeiro contacto da população com o SNS e deveriam ser um instrumento de combate às desigualdades em saúde, e não uma causa das mesmas”, aponta o relatório.
Descoordenação entre Saúde e Finanças
E se a reforma nos cuidados de saúde primários está longe de ter sido concretizada, a dos hospitais parece estar ainda mais atrasada. Desde logo porque as instituições ainda vivem num clima marcado pelos cortes do período da troika, em que “o risco/a ameaça da necessidade de um novo bailout tem limitado o aumento da despesa pública, incluindo o investimento no SNS”. O que na prática leva a dívidas e subfinanciamento crónicos, que resultam da descoordenação entre o que é pedido pelo setor da Saúde e o que é aprovado pelas Finanças. “Enquanto o ciclo económico é estabelecido através de orçamento previsional preparado, negociado, monitorizado pela estrutura do Ministério da Saúde (ACSS, ARS e entidades prestadoras), o ciclo de tesouraria dos hospitais é determinado centralmente pelo controlo de autorizações por parte do Ministério das Finanças. A dissonância tendencialmente crescente entre os ciclos de tesouraria e os ciclos económicos das unidades prestadoras de cuidados de saúde de natureza EPE, pertencentes ao SNS português, provoca um diferencial que gera falta de liquidez e um aumento de stock de dívida a fornecedores de bens e serviços essenciais para garantir a prestação de cuidados de saúde às populações”.
Mas o Observatório vai mais longe e argumenta que a reforma hospitalar foi afetada não só pelo quadro de restrições financeiras, “mas também pela incerteza gerada pela solução governativa inovadora” – leia-se geringonça -, em que o lançamento de reformas estruturantes, que geralmente tem lugar no início das legislaturas, “foi condicionado pela capacidade de obtenção de ganhos rápidos que justificassem a solidez dessa mesma solução”.
A reforma hospitalar foi afetada não só pelo quadro de restrições financeiras, mas também pela incerteza gerada pela solução governativa inovadora
Tendo em conta dados até outubro de 2017 (ainda antes da transferência de mais de 500 milhões de euros no final do ano, para que os hospitais do SNS pudessem “mitigar os pagamentos em atraso pelas entidades de saúde a fornecedores”) publicados na monitorização mensal e no benchmarking da Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS), em 30 hospitais ou centros hospitalares apenas três conseguiram melhores EBITDA (a sigla inglesa para resultados antes de juros, impostos, depreciação e amortização) em relação ao ano anterior e apenas um tinha as contas no verde. Segundo as contas do DN, também em relação aos pagamentos vencidos a fornecedores externos, apenas três instituições reduziram as suas dívidas a mais de 90 dias. No total, a dívida vencida situava-se nos 1,4 milhões de euros, mais 30% do que em igual período de 2016. “Resumindo, no país a crise económica acabou, mas no setor hospitalar continua”, sublinha o Relatório Primavera.
O peso da confiança política
Ainda nos hospitais, e apesar da criação da Comissão de Recrutamento e Selecção para a Administração Pública (CRESAP) e de muitas recomendações, quer do Tribunal de Contas, quer da própria troika, que pediam critérios mais transparentes para selecionar os presidentes e membros dos conselhos executivos dos hospitais, o processo de nomeação é praticamente o mesmo, mantendo-se o forte peso de confiança política. “Antes da CReSAP, a nomeação era feita pelo Ministro da Saúde e pelo Ministro das Finanças; após a criação da CReSAP passou a ser elaborada uma proposta pela tutela responsável, sendo feita uma avaliação pela CReSAP sem qualquer carácter vinculativo, e a nomeação é feita posteriormente pelo Conselho de Ministros. Não deixa contudo de ser importante assinalar que se ganhou alguma transparência neste processo apesar das mudanças sucessivas no que se refere à publicitação dos pareceres da CRESAP”.