Do Benfica à Carregueira, Vale e Azevedo sempre em jogo com a justiça
De presidente do Benfica a recluso na prisão da Carregueira, com passagens por Londres e Mónaco, o antigo advogado teve nos últimos 20 anos um percurso recheado de condenações. Agora, devido a prescrição, pode ficar livre de mais um julgamento
João Vale e Azevedo já não era um desconhecido quando em 31 de outubro de 1997 foi eleito presidente do Sport Lisboa e Benfica. Já era a segunda candidatura ao cargo pelo advogado mas poucos esperavam que viria a ficar na história do clube e da justiça portuguesa como se veio a verificar. Foi também a 31 de outubro, mas de 2000, que foi afastado da direção, com os sócios a elegerem Manuel Vilarinho e a terminarem com o seu reinado na Luz.
Foi um período complicado para o Benfica naqueles anos. Ao insucesso desportivo, com dezenas de contratações de jogadores que mais tarde iriam ser avaliadas em tribunal, o clube afundou-se e esteve envolvido em várias polémicas, com atrasos no pagamento de transferências de futebolistas, a polémica quebra contratual com a empresa Olivedesportos (detentora dos direitos televisivos dos jogos de futebol do Benfica) e a anunciada delapidação do património que os seus opositores clamavam. Na memória fica ainda o anúncio da dispensa de João Vieira Pinto, então uma estrela do clube que acabaria por assinar depois pelo rival Sporting. De positivo terá ficado a constituição da SAD, com alterações introduzidas depois pela direção seguinte, o arranque do centro no Seixal, a equipa de ciclismo que venceu a Volta a Portugal e a aposta no jovem treinador José Mourinho, que chegava de Barcelona, onde era adjunto, e deu uma nova vitalidade ao futebol do clube.
Apesar de todo o barulho, o advogado natural de Lisboa (17 de maio de 1957), formado na faculdade de Direito da cidade e que chegou a ser assessor jurídico no governo de Pinto Balsemão (1981), conseguia manter um grupo ainda fiel de apoiantes. Mantinha o discurso de inocência e dedicava-se aos negócios. Mais do que advogado, com escritório de luxo em Lisboa até 2000, Vale e Azevedo era um empresário em conjunto com a mulher Filipa, uma companhia sempre fiel ao longo de todos estes anos. O casal tem dois filhos e vive hoje em Londres onde a justiça portuguesa procura novamente a sua extradição.
Do Benfica para a prisão
Os primeiros indícios de que as coisas iam correr mal foi dado por Pina Moura, ministro da finanças em 2000, ao afirmar no Parlamento que “há indícios de irregularidades que impõem e justificam o prosseguimento e o alargamento da ação inspetiva” ao Benfica. Vale e Azevedo reage e diz-se “indignado”. Fala em “linchamento público” e garante que “não existem quaisquer irregularidades”. Foi detido em fevereiro de 2001, com a realização de buscas no seu escritório, e acaba por ficar em prisão domiciliária.
Em causa estava a transferência do guarda-redes russo Ovchinnikov, em que Vale e Azevedo se apropriou de 650 mil euros usados para a compra do iate Lucky Me. A meio desse ano de 2001, já outros casos saltam para os tribunais. O ainda advogado é ouvido pela justiça no caso da alienação dos terrenos da Urbanização Sul do clube e a compra e venda simulada de uma herdade no Seixal, onde o Benfica ia construir o centro de estágio. Em agosto é decretada a prisão preventiva: perigo de fuga e perturbação do inquérito fundamentam a decisão. Ficou detido no estabelecimento prisional da PJ de Lisboa.
Em 2002, em janeiro, começa o primeiro julgamento relativo ao caso Ovchinnikov e é igualmente conhecida a acusação relativa ao processo Euroárea, o nome da imobiliária que acabou envolvida na compra os terrenos do Benfica e com quem o clube teve mais tarde de chegar a um acordo. Defendido por José António Barreiros, um advogado conceituado, Vale permanecia indiferente às acusações e reclamava total inocência.
A decisão do primeiro julgamento chega em abril: é condenado a quatro anos e meio de prisão efetiva no âmbito do “caso Ovchinnikov” e permanece preso no estabelecimento prisional da PJ.
Os 14 segundos de liberdade
Após mais de três anos em preventiva, acontece um episódio que Vale e Azevedo diz que nunca irá esquecer. Corria 2004 e o Tribunal da Relação de Lisboa decidiu libertar o antigo líder do Benfica, por não ter sido ouvido no âmbito de uma diligência processual relativa à prisão preventiva. Ficaram célebres as imagens captadas de Vale e Azevedo a sair da prisão, com a família à espera e também o juiz Ricardo Cardoso. Foram 14 segundos em liberdade que acabaram por lhe dar alguma simpatia nacional dado o inusitado da situação. Em causa para nova detenção estava já o processo Euroárea. Só deixou a cadeia em julho de 2005, ao sair em liberdade mediante uma caução de 250 mil euros, por decisão do coletivo de juízes que julgava o caso.
Neste processo estava em causa a apropriação de verbas relacionadas com a venda de terrenos da Urbanização Sul do clube. Acabou condenado a um ano e meio de prisão efetiva, mas com o cúmulo jurídico efetuado com a condenação a quatro anos e meio de prisão no caso Ovchinikov, viu ser aplicada uma pena de seis anos. O colectivo de juízes da 8ª vara do Tribunal da Boa Hora deu como provado que Vale e Azevedo cometeu três crimes de falsificação no caso Euroárea mas absolveu-o dos crimes de peculato e de branqueamento de capitais – não foi dado como provado que se tivesse apropriado de cinco milhões de euros com a venda dos terrenos. Foi também absolvido do pagamento de uma indemnização cível ao Benfica no valor de cinco milhões de euros.
Foi em liberdade e já expulso de sócio do Benfica que, em outubro de 2006, teve a condenação mais pesada, sete anos de cadeia, aos serem dados como provados dois crimes, de falsificação de documentos autênticos e burla agravada, no âmbito do caso da hipoteca de um prédio da família Dantas da Cunha. Não se conformou. “Esperava uma absolvição e vamos lutar por ela custe o que custar”, disse à saída do Tribunal, ainda rodeado por duas dezenas de apoiantes, benfiquistas que mantinham a lealdade ao antigo dirigente.
Mas havia mais. Em março de 2007, foi de novo condenado, desta vez a cinco anos de prisão por burla qualificada no caso Ribafria e ainda a pagar uma indemnização de 518 mil euros aos lesados. Em causa neste processo estava a apropriação ilícita de 1,5 milhões de euros por Vale e Azevedo, numa operação de transferências bancárias para o Luxemburgo que se destinaria a conseguir vantagens fiscais para dois empresários. É efetuado depois o cúmulo jurídico e fixada a pena em onze anos e meio de prisão.
No ano seguinte, as autoridades portuguesas querem colocá-lo na cadeia mas dão conta que vive em Londres. É pedida a sua extradição e os tribunais ingleses rejeitam, iniciando-se uma longa batalha jurídica que chegou ao Supremo inglês. Neste período, Vale e Azevedo passeia-se pela capital inglesa, assistia ao torneio de ténis de Wimbledon e mantinha uma vida de luxo. Só em 2012 é que se entrega às autoridades e é conduzido à cadeia para cumprir os onze anos e meio, a que foram descontados os três anos e meio que esteve detido em preventiva. Cumpriu cinco sextos da pena de prisão e foi libertado em junho de 2016.
Sacristão na cadeia
E foi quando ainda cumpria pena no Estabelecimento Prisional da Carregueira, onde gozava de boa reputação e era mesmo o sacristão da igreja da prisão, que Vale e Azevedo ouviu em março de 2013 o juiz-presidente José Barata, do coletivo da então 3ª vara criminal de Lisboa, condená-lo a 10 anos de prisão pelos crimes de apropriação indevida de mais de quatro milhões de euros do Benfica, branqueamento de capitais, abuso de confiança e falsificação de documento, referentes às transferências dos atletas Scott Minto, Gary Charles, Tahar e Amaral. O tribunal considerou que o ex-presidente do clube lisboeta beneficiou da falta de “controlo e vigilância” para “apropriar-se ilegitimamente de verbas para seu proveito próprio”. O juiz sublinhou que Vale e Azevedo agiu “com dolo”.
Esta condenação está por cumprir e é a nova tarefa da justiça portuguesa, remetendo para o passado, já que será necessária nova extradição. Terá sido a pensar nisso que em junho passado Vale e Azevedo viajou para Londres com a mulher. Terá seguido num jato privado, segundo o Correio da Manhã, antevendo que o mandado de detenção podia ser executado em Portugal. Vive de novo de forma faustosa apesar de declarar em Portugal não ter rendimentos. De resto, ao longo das condenações judiciais, os lesados ficavam sempre pouco satisfeitos com as indemnizações. “Não tem nada em nome dele”, lamentavam, pouco esperançados em recuperar o dinheiro.
Em 2017 ainda foi detido no Mónaco, devido ao mandado de detenção que Portugal tinha emitido em 2008. A situação foi esclarecida no próprio dia. A sua advogada disse, na altura, que Vale andava a reorganizar a sua vida. Mas como empresário. Com a inscrição na Ordem dos Advogados suspensa desde 2005, acabou por ser expulso em 2013. “Concluiu-se que o arguido não possui idoneidade moral para o exercício da profissão, pelo que em consequência determinou-se o cancelamento da inscrição como advogado”, decidiu o Conselho de Deontologia de Lisboa.
Além da pena de dez anos por cumprir, João Vale e Azevedo ainda tem um outro processo, iniciado em 2015, que irá a julgamento em março, por burlas em negócios imobiliários que não envolvem o Benfica.
O clube é que viu agora serem declarados prescritos os crimes de peculato e falsificação de documentos relativos ao processo, aberto em 2007, de venda de direitos televisivos. Vale é acusado de se apropriar de 1,2 milhões de euros em 1998 e 1999, há vinte anos, e para já está livre de mais um julgamento. Por enquanto, já que o clube benfiquista anunciou que pretende recorrer desta decisão e o Ministério Público pode fazer o mesmo.