Como vai Centeno descalçar a bota?
Quando os comissários que tutelam as pastas do Euro e dos Assuntos Económicos e Financeiros se pronunciarem sobre os projetos orçamentais, Centeno será o homem no meio do caminho da rota de colisão entre Roma e Bruxelas.
A partir desta quarta-feira, o dossier técnico será depositado na secretária de Mário Centeno e será o português quem vai ter que o gerir politicamente. Dentro dessa pasta segue toda a polémica, que resultou num processo sem precedentes, com a Comissão a exigir a revisão do documento, com Centeno em Roma e dizer que só um novo documento dissiparia todas as dúvidas. Como se sabe, o Governo Italiano manteve até ao fim a posição, que pretendeu vincar, ao submeter um orçamento expansionista.
É a primeira dificuldade de Centeno?
É reconhecido em Bruxelas que a situação de Itália só vem acrescentar dificuldade ao exercício do ministro das Finanças, na condução dos trabalhos do Eurogrupo. Mas há mais. A proximidade de eleições europeias, no próximo ano, obrigará a que uma parte da discussão daquela que é a bandeira do seu mandato – a reforma da União Económica e Monetária -, seja feita sob pressão, e a restante com as novas lideranças institucionais renovadas. O contexto político é desfavorável.
Como vai o Eurogrupo lidar com a situação?
Em qualquer dos cenários que se coloquem, haverá um discurso que se manterá coerente em torno da “importância das reformas” e do “tempo de elas demoram a produzir resultados”. Nas reuniões anteriores não houve lugar a dramatizações políticas e o tema foi mantido fora da agenda oficial, e o tema foi devidamente controlado nas declarações que se seguiram à reunião.
O que vai dizer Centeno?
Itália já reformou dossiers importantes como as pensões e o mercado laboral.
O português pode continuar a insistir nessa mensagem, vincando, como fez esta terça-feira no Parlamento Europeu, que o crescimento económico “é um processo a longo prazo [e] não podemos vê-lo como uma corrida de 100 metros”. Depois pode também continuar a insistir que “ainda há trabalho a fazer”. Centeno já disse várias vezes que o “nível de dívida [de Itália] é muito alto para qualquer padrão económico em todo o mundo”. Recomendava-se contenção, seguindo a regra inscrita nas leis nacionais dos 25 Estados subscritores do pacto orçamental.
E as regras?
Primeiro, o que elas dizem: o pacto orçamental inclui todas as regras do Pacto de Estabilidade e Crescimento, nomeadamente a limitação do défice a 3% do PIB, mas introduz novas nuances. Para os Estados-membros com contas sãs, em que a dívida representa 60% da riqueza produzida no país, admite-se que o défice estrutural possa alcançar 1% do PIB se o rácio da dívida em relação ao PIB for significativamente inferior a 60%. Acima desse limite, o défice estrutural deve ficar abaixo de 0,5% do PIB. Ou seja, com uma dívida superior a 131% do PIB, Itália deveria apontar para um défice inferior a 0,5% do PIB, se pretendesse evitar os avisos da Comissão Europeia. Em vez disso, não só desenhou um orçamento expansionista, com um défice de 2,4%, como o manteve inalterado apesar dos alertas e do agravamento do tom de Bruxelas.
Perante este cenário o que pode fazer Bruxelas?
Teoricamente, pode desencadear um mecanismo especial para penalizar o país, por “desvios significativos”. Na interpretação mais sancionatória, a Comissão Europeia pode exigir um depósito ao Governo italiano de 0,1% do Produto Interno Bruto da Itália numa conta sem juros, que só podem ser recuperados quando a situação estiver corrigida. O montante rondaria os 1700 milhões de euros. Não se trata de uma multa. A penalização foi desenhada para evitar que as negociações se arrastem quando surgem divergências, como foi o caso. Está previsto que um Estado nestas condições possa reaver esta verba quando a situação estiver reposta.
Como se defende Itália?
Giovani Tria, que tutela a pasta das Finanças, tem dito que “nos últimos 20 anos, Itália tem tido um superavit primário, com exceção de um ano em que houve uma grande crise”. O tom confrontacional já assumido por Bruxelas é contra-atacado do lado de Roma, e Tria também já instou a Comissão a “deter a corrida de confrontos, para os quais não tem motivo”.
Tem outros argumentos?
Sim. Até “porque França, Espanha e outros países tiveram níveis imensuráveis de deficit” e, mesmo “na história das finanças públicas italianas, 2,4% é um dos menores défices”.
Bruxelas vai manter o braço de ferro?
Quando questionado pelos jornalistas italianos sobre a razão de uma penalização a Itália, quando outros países sempre tiveram direito a perdão, o porta-voz da Comissão recomendou que se aguardasse, pois “provavelmente não estaria certo” de que tal acontecesse.
Há outros instrumentos em Bruxelas?
A pressão costuma ser eficaz quando os mercados funcionam como um aliado. Não tem sido o caso. Em boa verdade, também ninguém quererá realmente ver Itália a levar uma chicotada dos mercados, já que o risco é demasiado alto, dada a dimensão da economia italiana.
Pode haver flexibilidade?
Perante a situação inédita, as opiniões não são consensuais. Há quem considere que não há espaço para interpretações políticas, quando toda a discussão resulta de um tratado que tem como detalhe inovador a introdução de mecanismos de correção automática. Por outro lado, há quem admita que é preciso desdramatizar a situação e que será mesmo possível fazê-lo “com garantias”, pois em Bruxelas também se sabe que há governos que gastam abaixo do orçamentado. E essa cartada Giovanni Tria também pode jogar, na Comissão e no Eurogrupo.