Sociedade

Ricardo Araújo Pereira: “De mim as pessoas não esperam sensatez”

Acaba de publicar Estar Vivo Aleija, com os textos da Folha. Acha que ninguém liga ao que ele diz, apenas à maneira como o diz, e o principal é se faz rir ou não.

Fala sempre do que faz com alguma reserva, dando-lhe menos importância do que na realidade tem. Aos 44 anos, tem em casa duas filhas adolescentes que lhe fazem sentir como a comédia dele é infantil, numa atitude que classifica de “altivez ofensiva”. Nas crónicas para o jornal brasileiro Folha de S. Paulo, agora publicadas em livro em Portugal com o título Estar Vivo Aleija, dedica-se a esmiuçar temas como o complexo de Édipo, a impossibilidade de traduzir certas expressões da língua portuguesa, a invasão de termos estrangeiros no nosso dia-a-dia ou mesmo as desvantagens da Uber e outras bugigangas eletrónicas. Nesta entrevista, reconhece ao GPS um papel essencial na sua vida: não sabe ir de um lado para o outro, diz ele.

Nasceu a 28 de abril de 1974. Estava à espera do 25 de Abril para nascer?

É uma perspetiva muito simpática, mas duvido. Acho que só tive consciência política bem mais tarde do que isso. Mas repare que – já tenho escrito sobre isso – de facto eu nos últimos meses do Estado Novo estive preso.

Confinado, no isolamento.

Na solitária. E saí, fui libertado no dia 28, como aconteceu com vários lutadores da liberdade. Claro que eu estava no útero.

O mundo que lhe apareceu foi um mundo muito mais livre.

Não vivi um minuto em ditadura, é um orgulho.

Só teve consciência disso mais tarde. Pensava: antigamente não havia liberdade. O que é isso?

É aflitivo e penso muitas vezes nisso. Quem é que eu seria nesse tempo? Porque há várias possibilidades. Eu podia ser um clandestino mas também podia ser um pide. Há essa hipótese, teoricamente. Há de haver uma série de circunstâncias que levam uma pessoa a ser da pide. Ou então, e se calhar é o mais provável, pertenceria àquela massa enorme de portugueses que não são nem uma coisa nem outra, que viviam a sua vida, iam trabalhar e ficaram provavelmente satisfeitos com o 25 de Abril mas não fizeram rigorosamente nada para que ele acontecesse.

Esse é um tipo de raciocínio que fazemos em relação a, por exemplo, o que é que eu faria se vivesse na Alemanha no tempo do nazismo? Se fosse preso pela pide, falava, não falava?

Teria coragem para resistir à tortura? É isso.

Há um certo alívio ao pensar para trás?

Pois há, eu agradeço todos os dias o facto de ter nascido em liberdade. Por exemplo, a minha profissão era impensável. Durante o Estado Novo eu não teria esta profissão de certeza, dedicava-me a outra coisa. Sabendo que era perigoso, provavelmente dedicar-me-ia à indústria da panificação.

As crónicas de Estar Vivo Aleija, por natureza, não se referem nem à situação de Portugal nem à do Brasil. Estão num patamar que se calhar até lhe agrada mais. Em Portugal, a realidade está sempre a impor alguns temas.

Sim, alguns recorrentemente. Tem razão: eu não sei o suficiente da atualidade brasileira para falar sobre isso e eles não sabem o suficiente da atualidade portuguesa. Não sabem quem é o Sócrates, por exemplo. São aliás mais felizes.

É um jogador de futebol.

Sim, para eles é um jogador de futebol. Eu gostava. Gostava que a menção de Sócrates, para mim, evocasse apenas um filósofo e um jogador de futebol. Mas não. Estou constrangido por vários fatores. Um deles são os temas, também às vezes até a língua – parece a mesma mas na verdade não é exatamente – e também as próprias referências. Às vezes não sei se uma referência é partilhada pelo público brasileiro. Estes textos são escritos por uma pessoa que está presa de várias maneiras, constrangida ao nível dos temas. Provavelmente condenada a falar mais sobre si própria enquanto laboratório do que é ser humano.

Aqui, às vezes torna-se personagem, não é?

Um bocadinho, embora tenha uma liberdade que cá não tenho – lá ninguém me conhece. Mesmo que eu revele um pouco mais, isso não tem o peso que teria cá. Claro que agora fica tudo estragado.

Porque o livro é publicado cá, já está à venda. Este tipo de trabalho é mais estimulante para si?

Sim. Para já, é diferente do habitual. E depois envolve outro tipo de reflexão, essa sobre o que é “isto de estar vivo”, na frase do Manuel da Fonseca. E isso é divertido. Do ponto de vista da escrita, consegue ser um pouco mais difícil porque se vou para temas muito amplos do género “amizade” estou tramado, os limites são demasiado fluidos para conseguir concentrar-me numa coisa. Tem de ser “amizades recentes”, por exemplo, ou “o que significa ser amigo de uma pessoa desde criança e vê-la passar por todas as mudanças”. Tem de ser uma coisa mais específica.

E às vezes vai dar uma volta enorme. Por exemplo, o problema das palavras intraduzíveis e o chulé.

Com certeza. É uma das coisas boas da crónica, pode-se dar voltas grandes à vontade, pode fazer digressões, a crónica tolera tudo. É possível escrever uma crónica sobre um tema que nunca é referido, ou é apenas marginalmente. Um dos assuntos em que consigo concentrar-me é a língua, porque brasileiros e nós falamos a mesma embora às vezes não pareça. Há alguns pontos, como esse, que me merecem reflexão e profunda, como sabe, porque já teve oportunidade de ler o texto que se refere a isso: a língua inglesa e a língua francesa não têm uma palavra para chulé.

É uma formulação do tipo “pés que cheiram mal”.

É isso mesmo. Os ingleses, se quiserem dizer “os teus pés cheiram a chulé” dizem “os teus pés cheiram a pés”. É manifestamente pobre. Não sei como conseguem viver sem possuir a palavra chulé. Ingleses e franceses. E nós, tendo a palavra chulé, o que é curioso é que não há sinónimo. Foi um milagre que a língua portuguesa conseguiu mas mais nada, é um milagre parco porque não temos um sinónimo. Se quisermos um sinónimo temos de usar uma perífrase, uma formulação qualquer.

À inglesa?

Exatamente. “Aquele cheiro dos pés às vezes.”

Há outra questão da língua portuguesa que aborda aqui e que também não tem tradução. O devagar, devagarinho, ou antes, o inho, que é uma invenção tão doce.

Pois é. Os ingleses não sabem o que é devagarinho, o que é quentinho.

“Este cabritinho está assadinho.”

Sim, repare: assado é um particípio passado. A gente consegue pôr um diminutivo num particípio passado. Uma coisa é um substantivo, uma garrafinha é uma garrafa mais pequena.

Embora também se aplique a garrafas grandes, de vinho, por exemplo.

Uma garrafinha de vinho só é pequenina no nosso coração, é verdade. O que significa assadinho? Ele está tão assado como outro cabrito qualquer. É só uma coisa ternurenta. É muito diferente haver um cabrito assadinho ou estar meramente assado.

Eu disse cabritinho assadinho.

Faz diferença, é outra coisa ainda. Para ingleses que estivessem a escutar esta conversa a tradução seria completamente inacessível. São selvagens.

Ao longo das crónicas vamos percebendo também que não só é um grande leitor, uma pessoa que sabe muito de literatura, mas também sabe de literatura brasileira. Não vai só buscar o Machado de Assis.

Alguma coisa, sim. Repare, eu não faço outra coisa a não ser estar em casa a coçar-me e a ler. Tenho essa felicidade de, como não tenho uma profissão a sério, ter esse luxo: estou em casa, estou a ler, vou pensando em coisas do género “é curioso isto da palavra chulé”. A generalidade das pessoas está a fazer que o país avance, a produzir mesmo riqueza, a fazer coisas. Eu estou entretido com isto. Gosto de ler. Devo dizer que estudei literatura brasileira na universidade. Ainda no outro dia me cruzei num elevador com a minha professora, Ana Maria Martinho, grande professora. O que acontece nesse livro, precisamente por causa das características específicas que tem, o constrangimento dos temas, etc., é que faço o exercício, a partir desta epígrafe, deste verso ou desta ideia colhida num sítio qualquer: o que é que eu consigo dizer durante 2200 caracteres? Umas vezes vou buscar isso a coisas que leio, outras vezes vou buscar a coisas do dia-a-dia. Por exemplo, ligar o carro e introduzir uma morada no GPS, e o GPS pergunta: “Aceitar destino?” Como é óbvio, passei por aquela pergunta várias vezes, mas naquele dia pareceu-me que estava dentro de uma tragédia grega. Quando o GPS me pergunta se eu aceito o destino, ainda por cima era um destino tão fajuta – eu ia ao supermercado ou assim. Não me apeteceu responder afirmativamente à pergunta “aceitar destino?”. Também não se deve resistir ao destino, essa foi a dificuldade com que me confrontei. Conhecendo os clássicos, não se deve fugir ao destino dessa forma. Confrontei-me ali com a opção de aceitar o destino

E se não aceitasse o destino não ia dar ao supermercado?

Foi o que eu fiz.

Sabia ir ter ao supermercado sem o GPS?

Não, porque eu não consigo movimentar-me sem ele. Mesmo para ir para casa. Quando sair daqui vou pôr o endereço da minha casa no GPS, caso contrário não sei ir.

Está a brincar?

Não, não, eu não sei ir para lado nenhum.

Então o GPS foi uma grande invenção para si?

Uma grande invenção. Antes do GPS o que eu fazia era, por exemplo: eu queria ir da TSF para a TVI, e ia da TSF para casa e de casa para a TVI. Sabia mais ou menos o caminho de casa para sítios. Mas não sei o caminho de sítios para sítios entre si.

O seu GPS é falado em português ou em brasileiro?

Fala português de Portugal.

É que eu tive uma brasileira e era extraordinário. Todos os acentos das palavras estão errados, às vezes não percebemos para onde vamos.

Isso acontece também no meu, embora seja falado em português de Portugal. Em vez de dizer “a 500 metros vire à direita”, como a frase começa por um A, diz “Há 500 metros vire”, não faz sentido, está a dizer-me para fazer uma coisa no futuro quando a coisa aconteceu no passado.

Falou em clássicos, e há um clássico que numa das crónicas põe em causa – o complexo de Édipo.

Não me parece que o Freud tenha visto as coisas como deve ser. Porque o Freud dá o nome ao complexo porque ele mata o pai, e diz que temos esse impulso. Ora o que acontece na história de Édipo é que ele mata o pai mas não faz ideia de que está a matar o pai. Ele tem uma altercação de trânsito com um tipo na estrada e mata-o. Isso é um complexo de taxista. Há um tipo que se pega no trânsito com outra pessoa e deseja matá-lo, Isso sim, é um impulso que nós temos e parece-me significativo e primordial. Quem é que não tem vontade de matar um tipo que não faz o pisca? Mas ali o pai não está em causa, ele não faz ideia de que aquele tipo é o pai dele. Em primeiro lugar, o que ele está a fazer, e com gosto, é matar um tipo com quem tem uma altercação no trânsito.

Seria portanto mais um complexo de taxista?

Sim. Com respeito pelos taxistas e pela sua justa luta contra a Uber.

Até tem uma crónica que fala sobre a Uber. É mais um clássico. Saltar para um táxi e dizer “Siga aquele carro!” torna-se impossível com a Uber.

A maneira como estas bugigangas novas alteram o mundo a ponto de impedir clássicos como o herói entra no táxi e diz “siga aquele carro!”. Hoje não há táxis no aeroporto porque a Uber já deu cabo de tudo, e o herói entra num Uber e diz “Siga aquele carro!”, e o motorista diz: “Não, o senhor primeiro introduz o seu destino na aplicação, depois dá as estrelas. Quer água? Está boa temperatura?” E o herói deixa fugir o vilão e o vilão aciona os botões nucleares e o mundo acaba. Tudo por causa da Uber.

Há um outro tema que desenvolve várias vezes que é a terminologia em estrangeiro. O running em vez de correr, e por aí fora. É um tema que o irrita?

Irrita imenso. Ir correr para a rua é uma coisa um bocado plebeia. O que é que ele vai fazer? Vai correr. Não, eu vou fazer running, ah, se é running

E já foi jogging, como assinala.

Sim, eu tenho observado o que tem acontecido ao ato de correr na rua, passou do joggingpara o running, e o running tem umas coisas associadas em que o telefone do runner faz queixa ao Facebook e depois o Facebook diz quantos quilómetros é que o runner fez de running. É um pouco enervante para mim. Eu gosto de fazer coisas em português, gosto muito de estar a fazer coisas na minha língua. Quando faço isso estou a correr mesmo.

Há alguma adaptação, nos seus textos, ao português do Brasil? É feita lá? É feita cá? Porque no livro publicado aqui não há nenhuma concessão.

Eu tento não falar em português do Brasil mas facilito a tarefa aos meus leitores, aos quatro. Se posso escrever ónibus em vez de autocarro, escrevo. Depois reverti essas mudanças para a publicação do livro cá. Mas são mínimas. Às vezes há uma expressão qualquer que é de português de Portugal e é incompreensível para o público brasileiro e da própria Folhaenviam-me um e-mail: “Olha, achas que aqui podemos dizer não sei quê? Porque é assim que a gente diz isto cá.”

Fazer crónicas é uma parte do seu trabalho, não fiz no início uma apresentação porque as pessoas conhecem-no bem.

Um clássico caso de “dispensa apresentações”?

Sim.

Obrigado.

Todas as escolas que frequentou eram católicas, incluindo a Universidade Católica onde fez o curso de Comunicação Social. E no entanto é ateu. Foi uma overdose?

Não, eu não sou ateu por reação, sou ateu apesar de ter andado nesses colégios todos. Andei na primária num colégio de freiras vicentinas, depois no Externato da Luz de padres franciscanos, depois padres jesuítas. E tenho de todos a melhor recordação. Não tenho nenhuma razão de queixa, muito pelo contrário. O capelão da Universidade Católica, na altura em que lá andei, era o padre Tolentino de Mendonça, com o qual era muito fácil uma pessoa relacionar-se. Foi o padre que me casou. Qualquer dia, fui casado pelo papa, não sei se já reparou. Atenção, eu não estou satisfeito com essa perspetiva.

Porquê?

Porque posso pecar muito menos. Sinto-me muito menos habilitado para pecar. Foi o papa que me casou! Eu acho que em princípio nosso senhor fica muito mais atento às coisas que eu faço se o padre Tolentino for de repente papa, acho que as minhas ações passam a estar debaixo de um escrutínio muito mais amiudado.

Não tinha pensado nisso, mas também na verdade não sabia que tinha sido casado pelo padre Tolentino.

Chama-se casamento misto, é quando um ateu e uma senhora católica…

… que dá cabo dos livros…

…exatamente, resolvem casar. O direito canónico tem lá uma alínea de casamento misto.

Em teoria, o Ricardo não foi casado pelo padre Tolentino, não se casou pela igreja.

Sim, pode argumentar-se que eu estava de fora. Obrigado. Posso continuar a pecar.

Depois de todo o percurso escolar, tornou-se jornalista. Há um mito segundo o qual chegou um dia ao Jornal de Letras e disse que queria colaborar. Disseram que sim e depois gostaram. Foi assim?

Mais ou menos. O que aconteceu foi que no fim do curso os alunos podiam escolher o sítio onde estagiar. Havia muita competição, quem conseguia ir para o Diário de Notícias ou arranjar um lugar no Público, no Expresso, nas televisões. Eu pus Jornal de Letras e, sendo o único candidato, tive muita facilidade em ser aceite. Suponho que o José Carlos de Vasconcelos deve ter pensado “o que é isto?” Recebeu-me muito simpaticamente e deu-me uma incumbência. Estava cá o Luis Sepúlveda, o escritor chileno, e ele mandou-me entrevistá-lo. E eu fui fazer uma coisa que mais tarde percebi que vem ao arrepio de tudo o que se faz no jornalismo, que é ir mesmo ler os livros que o homem tinha escrito. Fiz a entrevista. Chego à redação e o Zé Carlos entra com lágrimas nos olhos a dizer “O Manuel Alberto Valente (que era o editor do Sepúlveda) diz que o Sepúlveda disse que foi a melhor entrevista que lhe fizeram”. Eu era um menino de 23 anos. Lá está, como sempre, eu tenho a consciência muito aguda da minha incompetência e penso: se eu me preparar muitíssimo pode ser que isto corra menos mal. A partir daí, caí no goto do Zé Carlos e geraram-se mitos como esse que acabou de dizer.

Veio depois o trabalho na TVI?

Isso foi durante o curso. Parecendo que não, isso foi um prémio: o prémio era um estágio não remunerado na TVI. Eu rezo todos os dias pelo tipo que ficou em segundo. Não sei o que ele ganhou mas deve ter aleijado.

Começou depois a fazer textos para as Produções Fictícias?

Sim, foi logo a seguir à faculdade, num determinado momento em paralelo com o JL.

Deixou o jornalismo porquê?

Talvez não seja assim tão dramático, porque nunca cheguei a estar no jornalismo. De vez em quando proponho à Visão, ou a Visão propõe-me, uma coisa qualquer que tenha marginalmente que ver com jornalismo. Ir entrevistar alguém ou fazer uma peça sobre não sei o quê, ou entrevistar o John Cleese. Ainda faço isso, mas é raro.

Preparou-se brutalmente para a entrevista ao John Cleese?

Não foi difícil porque eu já o conhecia bem e tinha feito o prefácio para a autobiografia dele. A dificuldade estava na fama dele, tinha muita fama de tratar mal as pessoas, ser desagradável, coisa que surpreendentemente não aconteceu, antes pelo contrário.

Apareceu-lhe um jornalista mais alto do que ele?

Não, porque foi via Skype. Estivemos a falar através de uma televisãozinha. Ele foi muito simpático.

Mantém as crónicas na Visão e tem também o Governo Sombra semanalmente, o que o obriga a estar sempre a par do que se passa no país e no estrangeiro. Tem uns temas recorrentes, como Trump.

Esse é um pano de fundo que está permanentemente. É preciso ir acompanhando a atualidade. Não é um esforço grande, mesmo que eu não tivesse aquele programa leria os jornais todos os dias e observaria aquelas notícias. A minha presença naquele programa é diferente do que é para os outros. As pessoas querem ouvir a opinião do Pedro Mexia, parece-me que se estão borrifando para qual é a minha opinião sobre os assuntos, a menos que a minha opinião as faça rir. É esse o contrato tácito que tenho com as pessoas e parece-me justíssimo. Quem vai à última página da Visão ou quem vê o Governo Sombrapara ouvir o que eu estou a dizer não está especialmente interessado na minha opinião. Se querem ouvir opiniões sensatas, ouvem o que está a dizer o Pedro Mexia ao meu lado, ou até o João Miguel Tavares quando não está em modo troglodita. Às vezes até faz algumas observações. De mim, as pessoas não esperam sensatez.

Não estou de acordo consigo. As suas opiniões, que são dadas sempre num tom mais irónico que faz rir, são muito consistentes.

Agradeço-lhe, mas…

Não é um elogio. De alguma maneira, encarna valores do politicamente correto, essa coisa fluida, e sem preconceitos.

Sim, mas o contrato tácito que tenho com as pessoas, que não pesa nada sobre mim, antes pelo contrário, parece-me justíssimo, é que não interessa muito a substância do que digo, interessa mais se o digo de uma maneira que dá vontade de rir. E eu tenho apreço por essa tarefa de fazer rir os outros, não tenho nada contra, se é essa a expectativa que têm. Isso não me oprime de maneira nenhuma. Às vezes perguntam-me: não é difícil ter esse peso de as pessoas terem a expectativa “vá, faz-me rir”. É tão difícil como para um canalizador as pessoas terem a expectativa de “vá, agora arranja-me a canalização”. Basicamente, é o objetivo do meu trabalho, seria bizarro se eu me queixasse.

Muitos preconceitos têm caído, o que coexiste com pessoas que têm esses preconceitos. Tem sentido essa evolução?

Sinto essa evolução, e ainda bem, porque me parece hoje inadmissível, por exemplo, a ideia de que para trabalho igual as mulheres tenham um salário menor do que os homens. Isso hoje é consensual embora seja ainda praticado. Há iniciativas, e bem, no sentido de fazer que isso deixe de acontecer. Ou a indignação que gera um acórdão que diz que uma mulher inconsciente ser violada por duas pessoas não é de ilicitude elevada. Parece-me que a sociedade consensualmente rejeita esse tipo de perspetiva. E considera absolutamente medieval que esse tipo de coisa continue a acontecer. Por outro lado, não posso deixar de dizer que me causa perplexidade que pessoas que se reclamam, mais do que feministas, proprietárias do movimento feminista digam coisas que me habituei a ouvir da boca dos machistas. Só para dar um exemplo meio folclórico, ainda recentemente umas feministas espanholas fizeram um plano sobre uma intervenção no sistema educativo para mudar as escolas e torná-las um pouco mais igualitárias. Um dos pontos do plano era substituir os campos de futebol por pistas de dança porque as meninas não querem jogar futebol, isso é uma coisa que exclui as meninas, que não querem jogar à bola. A ideia de que as meninas não jogam, de que o futebol não é para meninas, é uma ideia do meu tio Alfredo, não é de uma feminista. Eu habituei-me a ouvir da boca de pessoas machistas que o futebol não é para meninas. São as próprias feministas que dizem que o futebol não é para meninas, tirem os campos de futebol, a gente quer é pistas de dança? Este é só um exemplo, mas há vários outros desse tipo. Por exemplo, a ideia de que as casas de banho não deviam estar separadas por género: a separação por género foi uma reivindicação feminista desde o início, ainda hoje é em países como a Índia, porque se as mulheres não têm casas de banho para elas, é evidente que sair de casa e participar na vida pública lhes está limitado. Portanto, é bastante surpreendente ver agora que são outro tipo de feministas a dizer “vamos abolir a separação por género nas casas de banho”.

Nota diferença entre aquilo que é a conversa banal das suas filhas e aquilo que era a conversa banal das miúdas que conhecia quando tinha a idade que elas têm hoje?

A minha perspetiva é a seguinte: homens e mulheres, tirando as diferenças anatómicas que são claramente visíveis e encantadoras, na essência somos iguais. Os mesmos impulsos, as mesmas ambições, as mesmas sombras. Eu sou a favor de que as mulheres tenham uma participação política igual à dos homens. Fazem falta mulheres na política? Fazem. Porquê? Porque elas têm o mesmo direito do que nós. Há pessoas que não concordam, ou concordam até certo ponto. Dizem que faltam mulheres na política porque as mulheres têm uma forma diferente de fazer política. Nunca reparei que a Margaret Thatcher, a Angela Merkel, a Dilma, a Fátima Felgueiras fossem especialmente diferentes do que os homens costumam fazer. O que se passa é que o poder transforma as pessoas, tenham elas um pipi ou não. O que me parece é que há essa igualdade, embora, como é óbvio, homens e mulheres sejam diferentes. Ou então alguém ande a fingir naquele evento quadrienal chamados Jogos Olímpicos, onde homens e mulheres obtêm resultados diferentes. Chegando então à pergunta sobre as minhas filhas, às vezes estou a ouvi-las com aquela sensação do espião que finalmente consegue ouvir nas linhas do inimigo o que afinal dizem. É uma desilusão, porque acabam por ser as mesmas preocupações que eu teria. Às vezes têm pequenas nuances que não sei exatamente com o que têm que ver. Mas a dinâmica das amizades entre meninas adolescentes parece-me que é ligeiramente diferente da dinâmica das amizades dos meninos adolescentes. É possível que a testosterona tenha um papel aí, a capacidade de resolver as coisas à pancada e cinco minutos depois está tudo bem.

Já são adolescentes, as suas filhas? É uma prova dura?

Um bocadinho, sim, mas acho que não tenho razão de queixa, está tudo sossegado. Acho que não me odeiam.

Não o tratam com condescendência?

Isso sim, tratam, claro. Todos os dias me fazem sentir que a minha comédia é demasiado infantil para o gosto delas. Quando eu à mesa digo uma coisa qualquer elas manifestam uma altivez ofensiva.

Origem
DN
Mostrar Mais

Artigos relacionados

Botão Voltar ao Topo