Sociedade

Petanca. Uma forma de estar na vida a sul, ao fim da tarde, quando o calor abranda

Les boules, essa paixão francesa das margens do Mediterrâneo, entrou no Algarve por influência dos marroquinos. Ontem, na Gafanha da Nazaré, disputou-se a Taça de Portugal de Petanca, com cerca de 400 participantes

Se o mui prezado leitor julga que a petanca é um daqueles jogos nos quais não se consegue fazer batota é porque não viu (ou, entretanto, esqueceu) o Gendarme de Saint-Tropez, de Louis de Funès, e a sua maneira de dar um jeitinho especial à bola com a sua bota da tropa. A petanca, de pieds tanqués, pés juntos, é uma velha tradição provençal que terá ganho regras de competição em 1908, através de um tal Jules Le Noir, habitante de Marselha e nascido em La Ciotat. O jeu de boules, como também os franceses lhe chamam, vem lá dos confins da civilização e já era disputado por egípcios e gregos. A petanca já não tem bolas de argila ou de pedra como nesses tempos. Mas, nos seus primórdios de prova sujeita a leis, a doutrina dividiu-se entre o tipo de jogo que se praticava na zona de Lyon, entregue à regulamentação de Le Clos Jouve, a pétanque lyonaise, e a pétanque longue, ou provençal, a que Jules Hugues, o Le Noir, simplificou de tal forma que se tornou popular como poucos desportos em França e conduziu à fundação da Fédération Nationale des Boules em 1933.

Vem este relambório a propósito do esforço que a Federação Portuguesa de Petanca tem feito em prol da divulgação da modalidade entre nós e que teve o seu ponto alto na disputa, ontem, da Taça de Portugal de Petanca, na Gafanha da Nazaré, ali entre Aveiro e a praia da Barra, com a participação de mais de 400 atletas masculinos e femininos. Claro que, neste tipo de matérias, há sempre alguém que influencia alguém que influencia alguém e por aí fora.

Sendo muito jogo de rua nas cidades do sul de França, é normal que a petanca tenha sido absorvida pelas enormes comunidades de pieds noirs que aí habitam, sendo esta uma expressão de alguma forma inconveniente de classificar os imigrantes que vêm dos países do norte de África, como a Argélia, a Tunísia ou Marrocos. Pois terão sido os marroquinos a implantar a petanca no Algarve, de onde se espalhou pelo resto do país.

Sediada em São Brás de Alportel, a Federação Portuguesa de Petanca já chegou ao privilégio-mor de organizar um campeonato do Mundo e patrocina mais de 70 provas nacionais por ano. Os clubes inscritos são vários, desde o Clube Petanca Escola de Loulé ao Grupo Amigos Chinicato, o Clube Caça e Pesca de Séqua, o Clube Amigos da Petanca de Lordelo, o Desportivo Quarteirense, o Núcleo do Livramento ou a Associação de Vale da Telha. Um pouco às escondidas, meio clandestinamente, o jogo das bolas que tanto faz parte da cultura francesa infiltra-se em Portugal.

Vício Poder-se-ia dizer que a petanca, no sul de França, é mais do que um jogo ou um desporto: é um vício. Qualquer lugar é bom para praticar petanca, seja numa viela de Montpellier, num largo de Marselha, numa das praias de Cannes ou Saint-Tropez, como Louis de Funès e o seu gendarme aldrabão, ou nos jardins Six-Fours-les-Plages ou de Toulon, a cidade dos navios de guerra.

Dizem as estatísticas que, dentro do Hexágono, há mais de 300 mil jogadores de petanca inscritos nos diversos clubes do país e que a sua força atingiu até as antigas colónias francesas, como o Vietname ou o Camboja, porque das do norte de África já falámos.

As regras oficiais são suficientemente simples para poderem ser absorvidas pour n’importe qui. Joga-se la triplette, três contra três, la doublette, dois contra dois, ou o inevitável mano a mano, em qualquer tipo de terreno, num espaço confinado aos 15 metros de comprimento e quatro de largura. Sorteia-se a equipa que desenha no solo o círculo para o qual as bolas devem convergir e, em seguida, basicamente, procura-se que as bolas lançadas se juntem o mais próximo possível do objetivo, vencendo quem concentrar aí o maior número de bolas.

Estarei a ser simplista, resumindo assim um jogo cujos apaixonados afirmam ser de estratégia profunda. Será. Nunca passei da primeira classe ou do jardim infantil daquela versão que se levava para a praia numa caixinha de bolas de duas cores diferente e uma mais pequenina, branca, que servia de alvo, se a expressão é utilizável.

A verdade é que a petanca tem, hoje em dia, muita aceitação na Espanha, na Alemanha, na Holanda e na Bélgica, por exemplo, já para não falar do caso específico da Tailândia, que tem mais de 40 mil jogadores federados.

O campeonato do Mundo da modalidade é organizado pela Fédération Internationale de Pétanque et Jeu Provençal e já vai na sua 48.a edição. Não será de estranhar que, em todas as variantes disputadas – masculinos, femininos, juniores –, a França surja destacada com 42 medalhas de ouro, 15 de prata e 28 de bronze, deixando a Tailândia bem atrás com 12, nove e dez, respetivamente. No total, os franceses foram campeões do Mundo por 27 vezes. Acrescente-se que a variante dos campeonatos do Mundo são na categoria de triplette.

Para quem conhece bem o sul de França, de Cerbère, junto à fronteira com a Catalunha, a Martigues, La Ciotat e Menton, já junto a Itália, não deixará de ter na memória os homens que, pelos finais de tarde, ao sereno, se entretêm com les boules. É mais do que uma imagem de postal. É uma forma pacata de estar na vida, transposta do princípio da convivência humana e que nunca mas nunca envelhecerá.

Origem
Jornal i
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