Livrarias que só vendam livros são as únicas que não podem abrir
À boleia da permissão da venda de livros nos supermercados, algumas livrarias reabriram portas. Basta não serem só livrarias - venderem também produtos de papelaria ou material eletrónico, por exemplo. Mas se forem só livrarias, vendendo livros e mais nada, então terão de permanecer fechadas.
Nova evolução no problema da proibição da venda de livros imposta quando o Governo decidiu avançar para confinamento geral, em 20 de janeiro.
Agora as livrarias já podem vender livros outra vez – mas só se, no seu interior, tiverem outras valências comerciais que já podiam estar abertas (papelarias de venda de jornais, por exemplo). Se uma livraria for exclusivamente livraria, então continua a não poder vender livros.
Aproveitando essa evolução da legislação do estado de emergência – legislação essa que entrou em vigor às 00.00 de ontem, segunda-feira, dia 15, algumas livrarias já começaram a vender livros (caso da cadeia Bertrand ou, por exemplo, da Barata). As lojas FNAC também já podem vender outra vez livros.
Esta evolução começou pelo último decreto presidencial renovando o estado de emergência por mais duas semanas (das 00.00 de 15 de fevereiro às 23.59 de 1 de março).
“Podem ser estabelecidas limitações à venda de certos produtos nos estabelecimentos que continuem abertos, com exclusão designadamente de livros e materiais escolares, que devem continuar disponíveis para estudantes e cidadãos em geral”.
Mantendo as livrarias fechadas, o PR abria assim a porta à venda de “livros e materiais escolares” em “estabelecimentos que continuem abertos”. Por outras palavras: voltava a permitir que os supermercados e hipermercados (que nunca foram fechados pelos estados de emergência) voltassem a vender livros. Esta foi a interpretação imediata da diretiva presidencial. Na altura ninguém pensou que algumas livrarias poderiam aproveitar esta evolução legislativa. A ideia continuou a ser: os livros podem de novo ser vendidos, desde que não em livrarias. Mas afinal não é bem assim: nalgumas livrarias sim; noutras não.
Depois de aprovado o decreto presidencial no Parlamento, foi a vez de o Governo legislar, regulamentando o novo estado de emergência.
Nesse decreto ficou decidido que “o membro do Governo responsável pela área da Economia [Pedro Siza Vieira] pode, mediante despacho, determinar que os estabelecimentos de comércio a retalho que comercializem mais do que um tipo de bem e cuja atividade seja permitida no âmbito do presente decreto não possam comercializar bens tipicamente comercializados nos estabelecimentos de comércio a retalho encerrados ou com a atividade suspensa nos termos do presente decreto, com exclusão designadamente de livros e materiais escolares, que devem continuar disponíveis para estudantes e cidadãos em geral”.
Tradução: afinal os livros (e “materiais escolares”) podem ser vendidos em estabelecimentos comerciais que não tenham sido encerrados pelo estado de emergência: super ou hipermercados, por exemplo; ou papelarias e quiosques; ou lojas de telemóveis e produtos informáticos.
Portanto, se uma livraria tiver, dentro de si, uma valência comercial que o estado de emergência tenha permitido permanecer aberta – papelarias ou comércio de produtos eletrónicos, por exemplo, como acontece muito nas Bertrand e na FNAC – aí, nessa circunstância, já poderão voltar a vender livros. E foi isso que hoje começou a acontecer.
Livrarias protestam
Contudo, se a livraria for só livraria – o caso da maior parte das que são independentes das grandes cadeias -, então terá de permanecer encerradas, porque pertencem à lista dos estabelecimentos comerciais (como os restaurantes, por exemplo) fechados pelo estado de emergência instituído a partir de 20 de janeiro.
Também não poderão reabrir portas se, além dos livros, venderem apenas brinquedos – porque as lojas de brinquedos foram encerradas (e por isso os supermercados não podem vender brinquedos).
“Tal medida sugere que não foi o livro que ficou ‘desconfinado’, mas que foram essencialmente as pequenas e médias livrarias que ficaram ‘fora da lei’.”
A Rede de Livrarias Independentes (RELI) já criticou hoje o facto de as pequenas e médias livrarias terem ficado de fora do “‘desconfinamento’ do livro”
Num comunicado, a associação alerta que “as livrarias, aquelas onde toda a edição e todos os autores estão representados, foram os únicos estabelecimentos comerciais que não ficaram abrangidos por este ‘desconfinamento’ do livro”. “Tal medida sugere que não foi o livro que ficou ‘desconfinado’, mas que foram essencialmente as pequenas e médias livrarias que ficaram ‘fora da lei’.”
“Manter as livrarias impedidas de vender livros, é também condenar e menosprezar os editores que não conseguem ou não querem entrar nos canais de distribuição massiva de ‘bestsellers’, os mesmos canais que lhes impõem condições de comercialização a que não podem estar sujeitos.”
Para a RELI, “ver decretado o levantamento da proibição de venda de livros nas grandes superfícies, mantendo as livrarias fechadas, não deveria ser motivo de orgulho para ninguém”.
Além disso, “manter as livrarias impedidas de vender livros, é também condenar e menosprezar os editores que não conseguem ou não querem entrar nos canais de distribuição massiva de ‘bestsellers’, os mesmos canais que lhes impõem condições de comercialização a que não podem estar sujeitos”.
Aquela associação, que reúne livrarias independentes de todo o país, quer saber se o Presidente da República “também tem, ou não tem, poderes para decretar que o livro passe a ser, doravante e de uma vez por todas, um bem essencial, como o pão e a água”, e “se tem ou não tem poderes para decretar que as livrarias deixem de estar sujeitas às arbitrariedades do tempo da pandemia ou de qualquer decreto que decida pelo seu encerramento compulsivo”.
“É essa a grande questão do momento. É a resposta a esta dúvida, por parte dos responsáveis políticos, que tarda em aparecer. A nossa, a dos livreiros, está dada: mande-se abrir as livrarias”, apelou esta associação de livrarias.
“O livro e as livrarias deveriam ser objeto de um consenso alargado e a sua classificação definitiva como bem de primeira necessidade deveria ter um carácter de urgência.”
Ainda assim, a associação considera que “não ficou claro ou explicitado qual deveria ser a leitura do texto do decreto do Presidente da República sobre a regulamentação do artigo que invocava o tema dos ‘livros e material escolar'”.
Para a RELI “esta é a outra grande questão do momento”: “saber se os livreiros devem obedecer e seguir a letra da lei, quando nos diz que só os espaços abertos podem passar a vender livros, ou se devem seguir o espírito da lei — como sugerem alguns constitucionalistas -, que remete para o dever de os livros passarem a ser vendidos nas livrarias por serem classificados, também eles, como um bem de primeira necessidade”.
No entanto, “independentemente das incertezas”, a RELI defende que “o livro e as livrarias não podem (nem devem) estar sujeitas à intermitência das decisões dos poderes públicos, sejam eles o legislativo, o executivo, o inspetivo, o judicial (que por natureza chega sempre depois e nem sempre impede os atropelos à lei e à sã concorrência) ou o presidencial”.
“O livro e as livrarias deveriam ser objeto de um consenso alargado e a sua classificação definitiva como bem de primeira necessidade deveria ter um caráter de urgência”, afirma a RELI.