Sociedade

Emoções alimentam contas dos canais de televisão

A televisão tem mudado em nome da liderança das audiências. A aposta na “televisão relacional” é cada vez maior. Na estreia do “Programa da Cristina”, na SIC, houve muito choro - os especialistas explicam ao i porquê

Arrancou esta segunda-feira o tão aguardado programa de Cristina Ferreira, na SIC. Na estreia houve lágrimas tanto da apresentadora como do principal convidados, Luís Filipe Vieira. O presidente do Benfica jogou às cartas e Marcelo Rebelo de Sousa interrompeu uma reunião para telefonar à apresentadora a desejar-lhe- boa sorte em direto.

“Como, ao longo da vida, várias vezes, estive consigo quando arrancou com novas fases da sua vida (…), queria desejar-lhe felicidades”, disse o Presidente da República. Cristina emocionou-se. Não foi a única vez que correram lágrimas durante o primeiro programa da apresentadora na SIC: Luís Filipe Vieira também não resistiu quando Cristina lhe falou da figura paterna e de um boné que ainda hoje o presidente do Benfica guarda. “Cristina, você não faça isso”, pediu Vieira. “Faça-me esse favor (…). O boné há de ir comigo para o caixão”. 

Em quase três horas de emissão houve espaço para tudo, menos para deixar grande espaço de liderança à TVI. Depois de 16 anos a ajudar a levar as audiências da estação de Queluz de Baixo ao topo, a apresentadora tem agora como foco principal resgatar essa mesma liderança das manhãs para Carnaxide. A expectativa em relação aos resultados – que apenas são conhecidos hoje – é grande. No final de semana, quando foi a entrevistada do “Alta Definição”, o programa atingiu o resultado histórico de 1,1 milhões de espectadores.

Guerra de audiências A luta pelas audiências tem ganho novas dimensões, com os vários canais a fazerem apostas cada vez mais fortes e milionárias. Mudam-se os rostos e multiplicam-se as alterações nas grelhas da programação. No meio de toda esta luta para ocupar os primeiros lugares na tabela de preferências dos telespetadores temos assistido a uma verdadeira dança de cadeiras e a apostas em novos conteúdos. Pode mesmo dizer-se que há muitos anos que a indústria da televisão não enfrentava tantas alterações. A transferência de Cristina Ferreira no verão agitou o mercado e foi o mote para uma chuva de contratações que poderá não ficar por aqui. Mas acabou também por pressionar o aparecimento de novas “experiências sociais” e abriu-se a caixa de Pandora, com muitos a querem saber para onde se caminha em nome das audiências.

Ao i, Eduardo Cintra Torres já tinha explicado, em novembro do ano passado, que “é impossível prever o futuro e saber para onde vamos. Os limites vão-se testando”. E não é o único a pensar desta forma. Também Francisco Rui Cádima, professor de Ciências da Comunicação da Universidade Nova de Lisboa (UNL), afirma ao i que “explorar os sentimentos das pessoas não é nada de novo. O que acontece é uma procura de ir um pouco mais além. A televisão é assim e os produtores estão sempre a testar os limites. Cada vez se procuram experiências mais radicais para conquistar o público pelo extremo. Há uma luta constante entre a produção e os limites da lei”. A professora universitária Felisbela Lopes também considera que “a TV relacional já tem muitos anos. Nos primórdios, a SIC explorou muito este filão. Havia o ‘Perdoa-me’ e as pessoas iam lá pedir perdão umas às outras. Ou seja, não estamos perante um fenómeno novo, ele está é exacerbado. As televisões privadas entendem que as pessoas se aproximam mais discursos emocionais”. 

Outro momento intenso do “Programa da Cristina” foi Custódia Gallego falar sobre a morte do filho. Também Cristina Ferreira chorou com o sofrimento da atriz, que perdeu o filho em agosto de 2018, vítima de um cancro. 

No entender de Felisbela Lopes é preciso entender que este tipo de aposta serve melhor a ideia de atrair audiências do que ter um especialista a analisar um tema. “A linha é o vivido que explora em permanência o lado emocional. A SIC quer as audiências da TVI e esta guerra não é diferente do que fez, nos anos 90, com a RTP. Mas, nesta altura, fazia com caras novas, agora faz com pessoas que já lideram audiências”.

E nós? o que queremos ver? Jorge de Sá, sociólogo, não esconde que a comunicação social se tornou “espetáculo e vale tudo. Transformou-se numa luta pelas audiências”. E recorda a teoria que expõe “a terceira idade no quarto poder (meios de comunicação de massa)”. Neste caso, “a terceira idade é este tipo de exploração que até chega a ser excessiva. Chegamos a ter as pessoas a explicar como foi perder um filho”.

Também o investigador e professor universitário Manuel Villaverde Cabral deixa claro que “agora, com a Netflix, por exemplo, as televisões clássicas têm audiências cada vez mais baixas. As novas gerações não estão assim tão interessadas. Há cada vez mais pessoas a verem canais diversos e não os clássicos”. Na opinião do especialista, é isto que justifica a crescente tentativa de chegar às pessoas através das emoções. “Até esta polémica do Goucha [que convidou Mário Machado, líder do movimento de extrema-direita Nova Ordem Social] tem a ver com explorar a emoção. Neste caso, a emoção política”.

Para o sociólogo, “as emoções funcionam no imediato e podem trazer mais audiência”. Pegando no sucesso de programas como “Casados à Primeira Vista”, Manuel Villaverde Cabral explica que, “num país que nunca teve tão poucos casamentos e tantos divórcios, fazer estes programas é evocar um paraíso perdido”. E continua: “O que acontece é que as pessoas não perderam as emoções. As pessoas têm tentado entender-se e compreender-se através da televisão. Porque há uma enorme dificuldade de comunicação”.

Comparando com o que se faz e já se fez noutros países, Manuel Villaverde Cabral evoca o exemplo de Oprah Winfrey. “A Oprah não apelava à emoção. Ela apelava à inteligência. O público não está ali apenas para bater palmas. Está ali também para discutir”. E recorda ainda programas como o “Ponto de Encontro”. “Nós temos um feitio que é reservado mas, quando se quebra o gelo, as emoções vencem”. 

O sociólogo Boaventura Sousa Santos também diz ao i que “há muitos programas com esta tendência. Nós estamos numa época do fim da privacidade também muito por causa das redes sociais. E o público hoje é diferente”. No seu entender, não é exagerado dizer-se dizer que “a transposição para a televisão desta destruição da privacidade é a consequência natural desta tendência”. “A exploração a partir do choro é privilegiada como prova de genuidade. Estão a copiar o modelo que está nas redes sociais e nos telejornais. A ideia é criar sentimentos de adesão ou ódio. Esta exploração das emoções é uma constante da vida”, explica o especialista.

A complicar todo o cenário, está o facto de esta luta de gigantes pelas audiências ser um monstro que se alimenta diariamente. Felisbela Lopes nota que “as audiências são imprevisíveis. Momentos como o do Goucha podem atrair ou afastar pessoas. Qualquer deslize vai ser sempre aproveitado” pela concorrência. Também o facto de Marcelo Rebelo de Sousa ter ligado para o “Programa da Cristina” pode não ter sido “eficaz” porque “dividiu opiniões”. Ao contrário da aposta na entrevista de Luís Filipe Vieira – em televisão, as lágrimas são, quase sempre, sinal de sucesso garantido.

Origem
Jornal i
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