AFINAL, DIZER MENTIRAS NEM SEMPRE É MAU
Não que estejamos a fazer aqui a apologia da mentira, nada disso. Somos pela verdade – crescer com o exemplo do Pinóquio deu forçosamente os seus frutos. Contudo, mentir também tem coisas boas. Texto de Ana Pago
Não que estejamos a fazer aqui a apologia da mentira, nada disso. Somos pela verdade – crescer com o exemplo do Pinóquio deu forçosamente os seus frutos. Contudo, mentir também tem coisas boas.
Texto de Ana Pago
Passámos todos pelo mesmo: uma bola nos vasos da avó, as flores quebradas, “ah não fui eu, foi o primo”? Lá vinha o discurso de que ninguém se zangava se contássemos a verdade, menos mal os cacos, mentir é que nunca.
Crescemos a ouvir que a mentira é feia e tem perna curta (nem pensar nela é bom, quanto mais dizê-la). Na dúvida, bastava ver como o nariz do Pinóquio crescia se mentisse – algo que sucedia com frequência ao menino de madeira, um exemplo a não imitar. Mas e quando a mentira é melhor opção do que a verdade?
Saber mentir é uma arma poderosa num mundo nem sempre muito honesto, admite o psicólogo clínico Vítor Rodrigues, considerando que essa é uma habilidade que requer treino, à semelhança da ginástica olímpica e dos saltos para a água.
“Para começar, implica algumas capacidades que nem toda a gente domina, como ser capaz de evitar expressões corporais ou tonalidades de voz que traiam a mentira”, aponta. Se é para fazê-lo, ao menos que sejamos convincentes.
Renunciar às mentiras teria consequências desastrosas ao nível da confiança e da autoestima.
Sobretudo porque renunciar às mentiras teria consequências desastrosas para a maioria de nós, sublinha Dan Ariely, professor de Psicologia e Economia Comportamental da Universidade Duke, EUA: “Ao viver apenas com a verdade, receberíamos comentários honestos e brutais sobre nosso trabalho, o modo como nos vestimos, como beijamos e todo o tipo de coisas”, disse em entrevista à BBC. Tradução: não só íamos descobrir que ninguém nos liga assim tanto, como não somos tão importantes ou competentes como supúnhamos (um duro abalo na nossa autoestima).
Já para não falar nas repercussões negativas ao nível do desenvolvimento infantil – a ponto de poder comprometê-lo de raiz, com desfechos imprevistos – se por acaso uma criança fosse ter com os pais para lhes mostrar um desenho e estes respondessem: “Que porcaria! Como foste capaz de rabiscar esses traços que não se parecem com nada, muito menos com gatos?” Nem todas as mentiras são más, especialmente se protegerem os miúdos da verdade antes de eles estarem preparados para o golpe de recebê-la.
“Dizer-lhes que o Pai Natal existe, por exemplo, não deixa de ser uma mentira”, explica a psicóloga Leonor Baeta Neves. Mas então, se formos por aí, a própria imaginação é uma mentira, ressalva a especialista em desenvolvimento infantil, para quem é válido acreditar em super-heróis, sereias ou fadas, sem prejuízo para a criança, se isso se traduz em curiosidade, altruísmo e gratidão.
“Mentir é uma necessidade imprescindível numa cultura em que vigora o entendimento moral de que nenhum de nós quer ferir os sentimentos dos outros”, defende Michael Lewis, professor de Pediatria e Psiquiatria na Universidade Rutgers, EUA, e especialista em mentira (a começar logo nos primeiros anos de vida).
São dele algumas pesquisas que indicam que quanto mais inteligente e ponderada for uma criança, mais provável é mentir quando lhe perguntam se fez algo que não era suposto ter feito. Mais, diz: aos 4 anos, muitas já mentem para não magoar a pessoa que lhes ofereceu cuecas em vez do brinquedo que tanto desejavam.
Sem as mentiras amáveis do dia-a-dia haveria muito mais relações amorosas, laborais e de amizade a entrar em colapso, afirmam os cientistas sociais.
E sim, é um facto que sem essas mentiras corteses haveria muito mais relações amorosas, laborais e de amizade a entrar em colapso, garantem os cientistas sociais, apoiados num estudo da Universidade de Illinois, EUA, que concluiu que evitar magoar o parceiro é a causa mais frequente de engano entre os casais (que preferem conter-se para não afetar a confiança dos cônjuges).
Segundo uma outra investigação da Universidade da Califórnia, conduzida pela psicóloga social Bella DePaulo, estudantes universitários mentem numa em cada três interações sociais, com o número de inverdades a subir para cinco entre adultos.
De novo a tradução: embora nos incitem à verdade mal aprendemos a falar, a sociedade aceita melhor a desculpa de que ficámos presos no trânsito do que a realidade de termos adormecido. Ou um comentário amável, mas enganoso (do género “esse corte de cabelo fica-te tão bem”), à verdade nua e crua (“não devias ter cortado, ficou horrível”).
Ainda assim, “um mundo de veracidade seria, por definição, muitíssimo mais justo e equilibrado”, alerta o psicólogo clínico Vítor Rodrigues, para quem mentiras piedosas costumam implicar que decidimos por outra pessoa o que é melhor para ela e se tem, ou não, capacidade para aguentar a verdade.
“Nem sei se há mentiras mesmo boas, no sentido em que nos impedem de ser transparentes e confiar uns nos outros”, diz. Resta-nos saber se conseguíamos não mentir nunca mais. Muito honestamente.