He Jiankui, o “Frankenstein chinês” que não queria ser o primeiro. Só “o exemplo”
Chamam-lhe o "Elon Musk da China", mas queria ser Einstein. O pai diz que nunca ficou em segundo. Em 2015, He Jiankui disse ser "irresponsável" editar bebés. Agora dividiu a humanidade. E desapareceu.
Pela primeira vez na História, há dois tipos de pessoas no mundo: as geneticamente modificadas e as naturais. No grupo das primeiras só há duas bebés gémeas recém-nascidas, Lulu e Nana, cujos genes foram alterados para serem imunes às infeções pelo vírus da imunodeficiência humana. No grupo das segunda está o resto da Humanidade. O criador dessa controversa divisão chama-se He Jiankui, nasceu na cidade chinesa de Xinhua e tem 34 anos. Para uns é o pai de uma realidade “inevitável”. Para outros é “o Frankestein chinês”.
Os colegas de profissão dizem que He Jiankui é “o Elon Musk que queria ser o Einstein da China”. Preferia passar as férias da universidade dentro de um laboratório do que passear fosse por onde fosse, recorda o pai do cientista em entrevista a um jornal chinês. “Ele foi sempre o número um na primária, o número um no secundário, o número um na universidade e o número um depois disso. Nunca foi o segundo, sempre o primeiro”, acrescenta. Desta vez, ao utilizar uma poderosa ferramenta de edição genética em embriões humanos, He Jiankui fechou os olhos às concorrências. Não lhe importava ser pioneiro. Só interessava ser “o exemplo a seguir”, admitiu em entrevista à Associated Press.
Esperto, louco e genial. É assim que os vizinhos, os amigos de infância e os colegas de laboratório o adjetivam. Era tudo isso, menos cientista. É certo que estudou Física na Universidade de Ciência e Tecnologia da China e que tirou um doutoramento em Biofísica na Universidade Rice, nos Estados Unidos. Mas no blog que mantinha, He Jiankui assumiu-se antes como “um homem de negócios”, com funções em quatro empresas na província de Guangdong, uma em Pequim e ações em oito empresas.
Numa delas, a Direct Genomics Biotechnology, He Jiankui é o presidente e detém um terço da companhia, que se dedica a fabricar dispositivos para sequenciar moléculas de ADN. “Estive imerso na torre de marfim de pesquisa académica até tirar o doutoramento. Nunca tinha estado envolvido em investigação científica e em negócios, mas em Stanford a minha visão da vida foi verdadeiramente subvertida pela primeira vez”, admitiu no blog. No mesmo texto, He Jiankui defende que os académicos se deviam cingir à pobreza, para que possam “alcançar realizações investigativas”.
A ambição de He Jiankui não era dinheiro. Era outra. Em 2012, aderiu ao programa Thousand Talents Program, um projeto governamental de recrutamento com raízes em Shenzhen que oferecia um milhão de yuans — o equivalente a 128 mil euros — a quem fosse para a China apostar em investigações científicas. He Jiankui, que considerava “fraca” a investigação feita no país de origem, aceitou o desafio. E o dinheiro foi investido na Direct Genomics Biotechnology, que nasceu dos restos de outra empresa, a Helicos BioSciences, do professor da Universidade de Sanford Stephen Quake: “Devido à influência dele achei que era importante comercializar as conquistas científicas dele”.
Os planos de He Jiankui foram mal recebidos. Diz-se que a proposta do cientista chinês para a Direct Genomics Biotechnology foi inicialmente negada por 30 investidores em capitais de risco em seis meses. Foi por isso que He Jiankui aceitou o convite para regressar à China e receber um milhão de yuans, que utilizou como investimento para lançar a empresa que agora preside.
A generosidade de Shenzhen em incentivar startups, especialmente investidores em capital de risco, foi a principal coisa que me atraiu. A universidade ofereceu um grande apoio ao meu negócio de startups. Eu não sou professor no sentido tradicional. Prefiro ser um empreendedor do tipo investigador”, explicou no blog.
Para a China, He Jiankui era um investigador promissor. Tão promissor que, em setembro de 2017, o ministro da Ciência e da Tecnologia lhe teceu rasgados elogios ao trabalho feito na área da sequenciação do genoma. Do amor passou-se ao ódio. Na segunda-feira, He Jiankui anunciou ter alterado as informações genéticas de duas bebés para torná-las imunes às infeções pelo vírus da imunodeficiência humana. No dia seguinte, o Ministério da Ciência e Tecnologia mandou suspender todas as investigações científicas em que ele estivesse envolvido.
“A China proibiu o uso reprodutivo de edição em genes de embriões humanos. A experiência violou leis e regulamentos na China”, disse Xu Nanping, vice-ministro da Ciência e Tecnologia. Segundo ele, o ministério está “firmemente contra” as experiências com bebés geneticamente modificados e promete punir os investigadores que tenham trabalhado com He Jiankui.
Para fazê-lo, He Jiankui pediu uma licença sem vencimento à Universidade de Ciência e Tecnologia do Sul, uma universidade pública em Shenzhen na qual era professor associado no departamento de Biologia, em fevereiro deste ano: “É o primeiro membro do corpo docente do Departamento de Biologia. Treinado como físico, o seu maior interesse está na leitura e transcrição do genoma humano. Desenvolveu o primeiro sequenciador de molécula única, construído exclusivamente para aplicação clínica. Recentemente, tem-se concentrado na segurança da edição do genoma através do CRISPR-Cas9 para uso clínico”, desvenda a apresentação do professor na página da universidade, que ainda assim nega ter tido conhecimento dos planos de He Jiankui.
Mas as notícias desvendadas por He Jiankui na véspera da Segunda Cimeira Internacional sobre Edição Genética Humana em Hong Kong não chegou inesperadamente para toda a gente. Em entrevista ao The Guardian, William Hurlbut, especialista em bioética da Universidade de Stanford, revelou que sabia dos planos de He Jiankui mas que eles pareciam estar muito distantes: “Sabia que esse era o objetivo dele a longo prazo. Só não achei que ele fosse concretizá-lo de forma tão imprudente. Preocupou-me que o entusiasmo dele pelo que estava a fazer fosse tão grande que pudesse prosseguir mais rápido do que devia. Agora a porta está aberta para isto e nunca mais se fechará. É como uma dobradiça da História”.
As preocupações da comunidade científica não passam — ou pelo menos não passavam — ao lado de He Jiankui, que no blog profissional que mantinha chegou a dissertar sobre os potenciais e os perigos da edição genética em humanos. Numa das entradas em 2015, o cientista partilhou: “Precisamos de usar modelos animais para estudar o impacto da edição genética ao longo de várias gerações. O CRISPR-Cas9 é uma nova tecnologia, precisamos de uma pesquisa e compreensão mais aprofundada tanto do ponto de vista da ciência como da ética social. Antes de respondermos a essas importantes questões de segurança, qualquer comportamento humano que leve a cabo a edição de células germinativas ou a edição de genes é extremamente irresponsável“.
Se He Jiankui descobriu as respostas a essas perguntas — as mesmas perguntas que toda a comunidade científica coloca quando se fala de edição genética –, elas continuam no anonimato. A única mente que as poderá ter esclarecido (ou então seria “irresponsável”, disse o próprio) está em parte incerta desde quinta-feira da semana passado, depois de ter falado sobre a experiência com embriões humanos e de ter revelado que há mais um bebé geneticamente modificado a caminho. He Jiankui desapareceu desde então e nem a universidade, nem as autoridades chinesas, nem o laboratório que preside sabem (ou pelo menos revelam) onde está. Antes de ter desaparecido, no entanto, He Jiankui só pediu desculpa por ter falado sobre as experiências antes de os relatórios terem sido revistos por outros cientistas. “Agora a sociedade é que vai decidir o que fazer”, disse ele.
Por enquanto, a sociedade está dividida entre quem apoia as experiências de He Jiankui, quem as considera desumanas e quem acredita que elas nunca chegaram sequer a acontecer. Mas se for mesmo verdade tudo aquilo que o cientista chinês disse ter alcançado, então a Humanidade vai estar dividida para sempre. E como nunca antes.