Nacional

“Se Portugal não fizer nada, pode arder tudo outra vez”

Uma equipa de peritos sul-africanos esteve no nosso país, a convite de Tiago Oliveira, presidente da Estrutura de Missão para a Gestão de Fogos Rurais. O chefe da equipa ficou alarmado com o que viu: "Se nada for feito, pode arder tudo outra vez"

Qual foi o objetivo da vossa visita a Portugal?

A nossa equipa pertence à Wildfire, uma companhia especializada na gestão de incêndios e na articulação de todos os meios de combate. Esta visita foi enquadrada num programa de partilha internacional. A razão é simples: o fogo porta-se exatamente da mesma forma em todo o mundo. A ciência do fogo é exatamente a mesma. As pessoas falam línguas diferentes, mas fazem exatamente o mesmo. O que quer dizer que qualquer lição aprendida num lugar do mundo tem de ser partilhada. Não temos tempo suficiente para criar a nossa própria experiência. Os erros não devem ser repetidos porque podem ferir ou matar muitas pessoas. É por isso que estamos aqui, porque temos a experiência que podemos partilhar.

O que concluiu sobre a situação em Portugal, neste momento, tendo em conta a tragédia do ano passado?

Sem dúvida que a situação portuguesa é complexa. Não é o aquecimento global nem as alterações climáticas que causam os grandes incêndios. É o combustível que está disponível nos terrenos para arder, e essa é uma das lições que o mundo está a aprender neste ano. A Califórnia ardeu, Montana, Suécia, Grécia, Portugal, Indonésia, África do Sul, tudo ao mesmo tempo. E o denominador comum em todos eles não foi o comportamento do fogo ou o facto de estar muito seco, mas a quantidade de combustível no terreno pronto a arder. E isso tem origem num preconceito a larga escala segundo o qual todo o fogo é mau. Vê-se um fogo e apaga-se porque é mau, mau, mau. A natureza não é assim. A natureza está preparada para arder. Há muitas espécies que estão adaptadas ao fogo e procuram-no para se desenvolver, para se manter e fazer germinar as sementes. Temos de organizar a floresta de forma a contar com isso e por vezes até aproveitar o fogo para limpar o combustível a mais.

É importante a limpeza da vegetação, uma das medidas que o governo mais promoveu neste ano?

Sim, mas não apenas a nível do solo. As plantações comerciais são constituídas por linhas de árvores com espaço entre elas, para que num combate ao fogo os bombeiros possam mover-se entre elas. Se as árvores não estiverem assim não é possível travar o fogo. Têm de ter espaço entre elas.

E viu ainda muita “desorganização” florestal em Portugal?

Por todo o lado. Há anos e anos de combustível acumulado, e o combustível tem de ser gerido.

Isto acontece só em Portugal?

Adorava dizer que são especiais – e são em muitas coisas – mas nesta matéria não são únicos. No que são únicos é que vocês são muito complexos, têm muitas pequenas estradas com apenas uma entrada e uma saída. Se alguém for apanhado ali no meio de um fogo é muito mau.

O que temos de fazer mais para prevenir esses grandes incêndios?

O que falta é mesmo uma gestão de combustível a larga escala. Qualquer pessoa responsável por uma área tem de estar focada nessa gestão. Queimar a vegetação a mais, mudá-la, cortá-la, o que for preciso… Dar espaço às árvores e aos bombeiros para combater os incêndios quando acontecerem…

Pelo que diz, há sempre uma grande possibilidade de se repetir a tragédia de 2017, pelo menos em relação à grande dimensão da área ardida?

Sim. Portugal tem uma catastrófica quantidade de combustível nas suas florestas. Alguma coisa tem de ser feito. É uma situação complexa. Se nada for feito, muito facilmente pode arder tudo outra vez.

Se este problema está identificado, porque acha que não é resolvido?

Uma das razões é o preconceito de que já falei sobre a exclusão do fogo. O fogo existe há muitos anos antes de nós e continuará muito depois de nós. A questão é que neste momento esse problema do combustível tornou-se global. Portugal aprendeu as suas lições, e se nada for feito acontece outra vez.

Será como combater o fogo com o fogo?

Não apenas com o fogo controlado. De qualquer forma, neste momento a quantidade de combustível é tão grande que não podem arriscar usar o fogo para fazer essa gestão. É demasiado perigoso. Tem de se limpar primeiro e só depois usar o fogo.

Além dessa questão do combustível, que outros problemas pode salientar?

De acordo com a nossa experiência, vocês têm bom treino e formação, ótimos recursos, pessoal de terreno, aeronaves. É brilhante. No entanto, e vou dizer isto de uma forma gentil, às vezes podia haver uma melhor utilização desses recursos. Podia haver uma utilização mais eficiente. Não é complicado combater um incêndio, mas gerir um fogo é toda uma ciência diferente. No triângulo que constitui o fogo – calor, oxigénio e combustível -, o único lado que podemos influenciar é mesmo o do combustível. É a única peça do triângulo sobre a qual podemos ter controlo direto. Se o podemos fazer, porque não o fazemos? Sabemos que vai arder, é uma emergência. Pode estar calor, pode estar seco, mas se não houver combustível para arder, simplesmente não arde. Claro que podem dizer que se não houvesse a ignição o fogo não começava. Mas se não houvesse combustível, ou este fosse reduzido, o fogo não se propagava.

O que prevê para o futuro em Portugal sobre esta questão?

A não ser que alguma seja feita – e não digo apenas falar, digo fazer mesmo -, vai acontecer outra vez o que já aconteceu. E odeio dizer isto. Mas posso até escrevê-lo num pedaço de papel.

Qual foi a maior surpresa do que viu neste mês que aqui esteve?

A rapidez com que o combustível já aumentou desde a última vez que cá estive, em novembro de 2017. Piorou mesmo muito. Pensei que vinham aí grandes problemas de novo. O que vamos fazer? Reduzir o combustível. A minha equipa que esteve na zona de Pedrógão e em Monchique viu postes de eletricidade sem o terreno limpo de vegetação à roda, quando esta foi uma das causas de incêndios. Não estamos a aprender as lições. E digo “nós” a uma escala global.

O governo promoveu durante alguns meses a limpeza das florestas e muita gente fê-lo…

Mas tem de haver continuidade. Se não houver, o problema até piora. As sementes germinam mais depressa.

Há algum país que seja um bom exemplo na prevenção de incêndios?

Todos os países têm boas e más áreas. Aqui em Portugal, por exemplo, em Sintra, na área gerida pelo Monte da Lua (Parques Monte da Lua), estão a fazer um trabalho incrível na gestão de combustível. Sabemos que não é um trabalho fácil fazer em todo o país, mas é mesmo necessário. Os políticos têm de saber disto, porque são eles que mandam no dinheiro. Se houver vontade política, pode haver mudança. As pessoas têm de saber que não se pode culpar as alterações climáticas. É demasiado tarde para isso.

Origem
DN
Mostrar Mais

Artigos relacionados

Botão Voltar ao Topo