Liderança da SIC no contrato de Cristina Ferreira
O que leva um canal em dificuldades, como a SIC, a roubar a maior estrela à concorrência, a TVI, num contrato milionário? E porque é que a maior estrela da informação do grupo Balsemão, Miguel Sousa Tavares, faz o caminho inverso? O mercado dos canais abertos, cada vez mais magro, alarga o cinto dos milhões para tentar espevitar o negócio - pelo menos no curto prazo
Os canais generalistas estão, há anos, a perder influência – e, em Agosto, os resultados indicam que o número de portugueses que vê Cabo e outros canais já suplanta o somatório das quatro estações generalistas: RTP1, RTP2, SIC e TVI. As novas plataformas de conteúdos como a Netflix e os usos diversificados do aparelho de TV multiplicam-se. As redes sociais entram no jogo. Promete-se, aliás, a chegada de mais distribuidores de conteúdos pagos para breve – nomeadamente a HBO. Esta é a espiral que denuncia que a televisão está a mudar. E à velocidade da luz.
Mas, num universo quase paralelo e distante da realidade de dispersão dos públicos, SIC e TVI, com audiências em queda, estão num verdadeiro verão quente, que acaba de aquecer ainda mais com a época de transferências televisivas. Cristina Ferreira vai assumir as manhãs da SIC, em janeiro, por um valor que andará pelos 80 mil euros por mês – montante não confirmado pela Impresa ou por Cristina, futura consultora de Entretenimento na estação. O valor deverá contemplar uma margem variável para outros conteúdos que apresente, e promoções. Miguel Sousa Tavares já está a caminho de Queluz de Baixo, com a promessa de, garante fonte oficial, “começar a trabalhar já na rentrée, em setembro, em formato a designar”. Há ainda o desporto: os comentadores de Trio d’Ataque, da RTP3, João Gobern e Miguel Guedes estão a ser assediados pela TVI, para um novo programa de desporto.
As mexidas já noticiadas obrigaram os responsáveis das emissoras, RTP incluída, a terem já marcado reuniões de emergência com alguns dos seus principais rostos, não vá a dança das cadeiras continuar. O que se passa, então, com os canais privados nacionais que abrem os cordões à bolsa no meio da maior crise de sempre?
“Vejo mais a perda da TVI do que o ganho da SIC”
“Investimento não é custo”, reage Luís Marques, antigo diretor-geral da SIC e ex-administrador da Impresa, que considera que o dinheiro de que se fala poderá “trazer retorno”, bastando, para tal, que a estação “saiba tirar proveito das redes sociais e de uma pessoa com tamanha influência.” Mas, lá está, isso implica uma mudança no negócio: é preciso saber como encontrar “um novo modelo de negócio à volta da Cristina, para lá da TV, é preciso pensar todo o universo de media e incluir todos os componentes”. Até porque os fãs que Cristina tem nas redes sociais – 752 mil seguidores no Instagram, e um milhão e 700 mil fãs no facebook – não se traduzem imediatamente em negócio para o canal em que a “influenciadora” aparece.
É por isso, defende o economista dos media, Luis Oliveira Martins, que “a contratação de Cristina é uma aposta de risco”. O professor da Universidade Nova de Lisboa diz que o caminho escolhido pelo grupo de Balsemão – que, aliás, viu as ações em bolsa a subir no dia seguinte ao anúncio -, é “um movimento estratégico em que a Impresa passa a ser um grupo de TV e outros meios e cada vez menos uma empresa de media tradicional.” Entretenimento em vez de informação – algo que está de acordo com os passos recentes de alienação de grande parte dos títulos de imprensa – com a venda das revistas Visão e outras, à Trust in News. E, concorda o analista, “resta saber como é que esta vai conseguir rentabilizar economicamente a contratação” milionária. Até porque tudo isto acontece no cenário em que a tv, como a conhecemos, está “ela própria, em transformação e crise. Estamos numa altura em que o fenómeno da televisão está a transformar-se, e os jovens não veem televisão.”
“A SIC vai fazer dinheiro com a publicidade que ela traz”
Luís Marques, que foi responsável pela transferência de Júlia Pinheiro da TVI para a Sic, diz apenas que “não há situações iguais”. Cristina Ferreira, sozinha, “não salva” um canal, mas “pode ajudar”. “Ela tem um público próprio, quase duas vidas em paralelo. Vai certamente impulsionar a SIC”. O ‘o roubo’ de Júlia à TVI, em 2011, foi feito por 50 mil euros, e com a promessa de que a estação recuperaria a liderança com o regresso da “filha pródiga”. Seria na altura um dos objetivos contratualizados pela apresentadora- tal como sucederá agora com Cristina Ferreira, segundo várias fontes. Mais de sete anos depois, a realidade não se cumpriu. Bem pelo contrário, e a liderança nas manhãs continuou a ser de Goucha e de Cristina – esse será o patamar a suplantar. Cristina Ferreira deixa uma herança de 368 mil pessoas sintonizadas na TVI (até à data), e recebe de Júlia, em média, 207 mil espectadores.
Este é um auditório cujo comportamento Luís Marques conhece bem, embora distinga as épocas. “As televisões são sempre um pouco como o futebol, nem sempre a mudança destas estrelas arrasta a mudança de público”, diz. Sérgio Gonçalves, especialista em publicidade digital, marketing e comunicação e responsável pela empresa Live Content, não concorda. Desvaloriza a dispersão dos públicos pelos múltiplos canais, diz que o talento da Cristina a distinguirá das travessias do deserto de, entre outros, Júlia Pinheiro e o próprio Manuel Luis Goucha. E coloca-a no patamar de Cristiano Ronaldo. “Ele vai para a Juventus e há uma mudança de fãs. Ela vai continuar a ter as pessoas que gostam dela e a seguem, gerando rendimentos através das redes sociais para o canal onde está”. Ou seja, “se a Juventus faz dinheiro com as camisolas, a SIC vai fazer dinheiro com a publicidade que ela traz”. Mas alguma coisa vai ter de mudar: “A SIC terá de ter uma equipa comercial bastante agressiva”.
Uma audiência a prazo?
“A não ser que a estratégia de Carnaxide se diversifique para, a par deste investimento, tentar captar novas audiências no digital, esta será sempre uma estratégia a prazo”, diz também Ana Marques, diretora-executiva da empresa digital Milenar. “Não se leva o público das redes sociais a ver televisão linear, o movimento é precisamente o oposto.” E o problema das televisões em sinal aberto prende-se com o público mais idoso, que “tendencialmente irá manter-se fiel aos hábitos de consumo”. Uma audiência a prazo, até porque esse grupo “vai acabando”.
Irá Cristina ser o rosto de uma traição e de um abandono, e por esse motivo penalizada? “Apesar dessa realidade ter existido com outras estrelas, acho que neste caso concreto ela tem um público próprio e isso não vai acontecer”, analisa Luis Marques. “Zero. Zero fator de traição”, responde Sérgio Gonçalves. “Ela fez isto tudo muito bem, com o nome dela e sem referir as estações, ela parte com uma combustão de fatores que a tornam única, como o recorde absoluto de seguidores”, diz o especialista em comunicação digital.
Luís Oliveira admite “o risco da travessia no deserto” até porque “não vai haver um copy paste da audiência”, embora considere que “não se pode menosprezar o efeito que a chegada dela pode ter”.
Tiago Froufe Costa, oresponsável pelo rasto digital milionário da “saloia da Malveira” feita nova ‘senhora Televisão’, , não arrisca futurologia, nem presta declarações. Quanto ao resto da equipa de Cristina Ferreira, a própria e todos os responsáveis da estação que a contratou mantêm-se no absoluto silêncio. O momento da confirmação pode chegar a 10 de setembro, dia de apresentação das grandes apostas do novo diretor-Geral de Entretenimento da SIC, Daniel Oliveira.
Porém, enquanto faltam as palavras e sobram as omissões, resta imaginar o poder do novo rosto de Carnaxide: dona de “uma capacidade de mobilização social apreciável” que leva Sérgio Gonçalves a contar a piada de um amigo: “O Marcelo popularizou a política de tal maneira que ainda podemos ter a Cristina como presidente”.
Outros casos
Herman José
Humorista
64 anos
Em 1999, Herman trocava a RTP pela SIC, que tinha quase dobro da quota de mercado da estação pública. Um caso raro em que o público não se sentiu ‘despeitado’ com a transferência de canal já que ele começou a liderar as noites de domingo assim que se estreou em Herman SIC.
Manuel Luís Goucha
Apresentador
63 anos
Em setembro de 2002, o rosto das manhãs da estação pública, em Praça da Alegria, mudava-se para a TVI, onde assumiu o programa Olá Portugal, que não correu bem A travessia no deserto foi longa e a vitória só chegaria em dupla, já com Cristina Ferreira
Júlia Pinheiro
Apresentadora e diretora
55 anos
Líder incontestada das tardes de Queluz de Baixo e das noites de domingo, a diretora e apresentadora mudou-se para a SIC em janeiro de 2011. Sete anos depois, ainda não conseguiu reconquistar todo o auditório que tinha ao seu lado quando estava na TVI
Fátima Lopes
Apresentadora e subdiretora
49 anos
Tem a liderança nas tardes da TVI desde o primeiro momento, mas a sua estreia na estação da Media Capital não foi automática. Antes tinha feito o concurso Agora é que Conta, que não conseguiu a vitória no horário.