Quatro meses de avanços e recuos para haver uma festa em tempo de pandemia
A festa de rentrée política do PCP vai mesmo realizar-se a partir de sexta-feira, com medidas de segurança sanitária preconizadas pela DGS e apesar do protesto dos comerciantes da Amora. Para trás ficam os alertas de Marcelo Rebelo de Sousa, as críticas de Rui Rio e as decisões do Governo.
“Não há festa como esta”, dizia o slogan publicitário criado há alguns anos para a Festa do Avante!, que se realiza anualmente desde 1976 – a exceção foi em 1987 – e serve de rentrée política do PCP. Esta frase ficou no ouvido, e agora, em plena pandemia, parece fazer todo o sentido, com a discussão que tem existido em torno da realização do festival que junta no mesmo espaço, a Quinta da Atalaia, no Seixal, música, arte e política. Será que as outras festas não são como esta?
Ainda antes do auge da polémica que se arrasta várias há semanas, com críticas dos mais diversos quadrantes políticos e consequente justificação dos comunistas, o primeiro-ministro, António Costa, admitiu a 8 de maio que “a atividade política do PCP ou de qualquer outro partido não está proibida”, mas alertou para o facto de que é necessário “respeitar as normas de saúde, como, aliás, o PCP disse logo que respeitaria”.
Passaram nove dias e o Presidente da República, Marcelo Rebelo Sousa, avisou que as regras das autoridades de saúde para as festas partidárias ou populares tinham de “valer para todos”. Estávamos numa altura em que o desconfinamento estava em marcha e em que se punha a questão sobre os festivais de música e as festas populares de verão um pouco em todo o país, mas também as festas partidárias.
“Há várias instituições que organizam as suas iniciativas, e a avaliação sanitária há de valer da mesma maneira para todas as iniciativas. Não me parece que o vírus mude de natureza de acordo com a natureza das iniciativas. Eu gostaria muito de, em setembro, ir à festa do Viso, que é uma festa tradicional em Celorico de Basto e que reúne milhares de pessoas, mas tem de se esperar para ver”, justificou o Presidente da República.
Festivais proibidos até 30 de setembro
A 21 de maio, foi aprovada por maioria no Parlamento a proposta do Governo que proibia a realização de “festivais e espetáculos de natureza análoga” até 30 de setembro, uma decisão inserida num conjunto de medidas excecionais e temporárias de resposta à pandemia. Curiosamente, a proposta passou sem votos contra, mas com a abstenção de CDS, PEV, Iniciativa Liberal e… PCP.
No entanto, o decreto-lei previa a possibilidade de os espetáculos “poderem excecionalmente” realizar-se em recinto coberto ou ao ar livre, com lugar marcado e de acordo com as regras estabelecidas pela Direção-Geral da Saúde (DGS). No entanto, o CDS e o Chega avançaram com propostas para anular essas exceções e, dessa forma, impedir a realização da Festa do Avante!. Mas não conseguiram a aprovação dessas propostas na Assembleia da República.
Em resposta a tudo isto, Jerónimo de Sousa, secretário-geral do PCP, avisava a 28 de maio que “não seria um drama” cancelar a Festa do Avante!, mas deixava um aviso: “Estamos muito empenhados na realização daquele grande ato político, cultural, de festa, de música, arte, que demonstra que não é um festival. Não estaremos distraídos em relação à evolução do surto nestes três meses e meio. Se as condições o permitirem, naturalmente realizaremos a festa.”
Quase um mês depois complementou, dizendo que o PCP tem tido “sentido de responsabilidade” durante a pandemia e, como tal, prometeu manter a Festa do Avante!, mas antes iria “pesar bem as circunstâncias em que se possa realizar”. E dias depois foi anunciado o cartaz do festival, confirmando os dias 4, 5 e 6 de setembro.
O sinal de Temido e o plano enviado à DGS
O primeiro sinal de que as autoridades iriam autorizar a realização da Festa do Avante! foi dado pela ministra da Saúde, Marta Temido, quando a 12 de agosto avisou que era impensável ter na Quinta da Atalaia cem mil pessoas. “Compreendo que se fale nesses números, na medida do que será a licença de utilização, mas estamos num momento específico, num contexto específico”, disse, acrescentando que “ninguém entenderia se fossem corridos riscos adicionais por uma circunstância de tratamento especial, mas também ninguém entenderia que fossem impostos deveres adicionais àquilo que são as regras específicas que estão a ser trabalhadas em áreas como a restauração, os transportes públicos ou os eventos culturais”.
Dois dias depois, o PCP anunciava, em comunicado, que iria baixar para 33 mil pessoas a capacidade da sua festa anual, ou seja, um terço da capacidade licenciada, que é de cem mil pessoas. Essa era uma das medidas do plano de contingência elaborado pelos comunistas e enviado para apreciação da DGS, a 14 de agosto. “Não se faz a Festa do Avante! para garantir o privilégio ou ganhos financeiros, como caluniosamente se insinua. A Festa, no contexto político excecional que vivemos, tem uma importância e um valor acrescido na afirmação da nossa vida democrática e o seu êxito será um contributo para a luta do nosso povo, para combater o medo e a resignação”, justificava Jerónimo de Sousa.
Só que as várias críticas que iam sendo feitas pelos adversários políticos do PCP subiram de tom a 24 de agosto, quando Rui Rio, líder do PSD, visitou Ponte de Lima. “Quer Governo quer o PCP estão a dar um mau exemplo ao país. Estamos no Minho, quantas romarias não foram canceladas neste ano, e bem, justamente por causa de algo que o PCP e o Governo neste aspeto não estão a respeitar?”, questionou o presidente dos sociais-democratas, para de imediato acrescentar: “Era prudente que o Governo não permitisse aquilo que se tem visto no Partido Comunista, que é o ‘quero, posso e mando’. Não há ‘quero, posso e mando’. Estamos em democracia, não estamos na União Soviética”, frisou.
Providência cautelar para impedir a Festa
Por essa altura, dava entrada no tribunal do Seixal uma providência cautelar interposta pelo empresário Carlos Valente, presidente do Palmelense Futebol Clube, para impedir a realização da Festa do Avante!, justificando com a defesa de direitos fundamentais e o risco do aumento de contaminação por covid-10.
Em comunicado, o PCP considerou essa providência cautelar de ser “desprovida de qualquer fundamento, só justificável pelo que visa de animação artificial da campanha reacionária contra a Festa do Avante!”. “A invocação de que ‘os festivais estão proibidos’, ainda que recorrentemente repetida, é absolutamente falsa, como, aliás, se pode constatar com os inúmeros eventos que se estão a realizar por todo o país”, acrescentaram os comunistas.
No dia 26 de agosto, Graça Freitas, diretora geral da Saúde, admitia que que a Festa do Avante! era um “evento complexo”, mas garantia que já existia “um primeiro documento com muitas orientações” relativamente às regras que permitiam a realização do festa em segurança.
Protesto na Amora e o alerta de Marcelo
Neste domingo, foi conhecida a posição de mais de 40 comerciantes da freguesia da Amora, que decidiram encerrar os seus estabelecimentos nos dias em que se realizar a Festa do Avante!. Uma medida de protesto e também de precaução para diminuir o risco de propagação do vírus, uma vez que são esperadas muitas pessoas na Quinta da Atalaia nos três dias em que decorre o evento.
Mas ao final da tarde, em Monchique, Marcelo Rebelo de Sousa pôs o dedo na ferida e questionou a razão de não serem públicas as recomendações da DGS em relação à festa dos comunistas. “Estamos a cinco dias da realização da Festa do Avante! e não se conhece a posição das autoridades sanitárias sobre as regras que entendem que devem presidir à realização. Isto é, não há conhecimento atempado, não há clareza, e não se pode saber se há respeito pelo princípio da igualdade”, afirmou o Presidente da República, lembrando que o país está “no meio de uma pandemia, os números têm subido nos últimos dias, e, mais do que nunca, é importante que se saibam as regras com clareza”. “E a cinco dias do evento não se sabe quais são as regras. Isso preocupa-me”, finalizou.
Rui Rio juntou-se a Marcelo Rebelo de Sousa no protesto contra o secretismo das medidas. “Ridículo e inaceitável. A insensata DGS está pura e simplesmente a gozar com todos nós. Em democracia, pior era impossível. Impõe-se agora que o Governo, que tutela este serviço, faça a divulgação do documento para todos percebermos o que é que a DGS está a querer esconder”, escreveu no Twitter.
A DGS defendeu-se dizendo que entregou o parecer ao PCP neste domingo e que competia à entidade organizadora divulgar as recomendações de segurança “se assim o entender”.
Parecer da DGS é finalmente público
Ora, menos de 24 horas depois, eis que a DGS resolve divulgar o parecer técnico sobre a Festa do Avante!, com autorização do próprio PCP. Entre as várias medidas preconizadas, destaca-se que, afinal, o recinto só poderá ter 16 563 pessoas em simultâneo, precisamente metade dos 30 mil que o PCP tinha anunciado. Além disso, o consumo de bebidas alcoólicas será proibido depois das 20.00, excetuando as que acompanham a refeição.
O PCP divulgou já nesta segunda-feira o seu plano de contingência de acordo com as recomendação da DGS, confirmando que “todos os lugares de todas as plateias de todos os palcos, incluindo as do teatro e as do cinema, são definidos com lugares sentados, cumprindo a lotação e ocupação máxima, de acordo com orientações da DGS e contribuindo para que as pessoas não permaneçam em pé, o que facilitará o movimento e circulação às mesmas”.
A quatro dias do arranque da Festa do Avante!, na próxima sexta-feira, Marcelo Rebelo de Sousa lamentou a tardia divulgação das regras de segurança que vão ser aplicadas no certame. “Eu teria preferido conhecer as regras há mais tempo. Não porque houve insistência para que fossem divulgadas, mas porque havia um dever óbvio, cívico, de divulgação”, frisou.
A Festa do Avante! vai, ao que tudo indica, realizar-se com novos moldes, tendo em conta as medidas de segurança preconizadas pela DGS. Isto apesar da contestação mais ou menos generalizada dos habitantes da freguesia da Amora, que vão ver as ruas “invadidas” por um número anormal de pessoas tendo em conta a pandemia.
No entanto, há ainda uma providência cautelar que pode ainda travar a Festa do Avante!. Afinal, depois de ter recebido a ação, o tribunal do Seixal declarou-se incompetente para decidir e enviou-a para o Tribunal Cível de Lisboa. Contudo, há a possibilidade de esta providência cautelar poder não ser julgada em tempo útil, precisamente por não ter sido apresentada inicialmente na comarca onde fica a sede do PCP, ou seja, Lisboa.